Arrisco dizer que nada nos aninha mais nesta condição de humanos, tão únicos quanto semelhantes, que a oralidade, o gesto ancestral de contar e ouvir histórias. Se uma história traz um castelo, talvez eu o imagine feito de pedras escuras, enquanto você, leitora ou leitor, pode visualizá-lo todinho branco.
Vivenciar a história depende do repertório de vida. Quem narra, mesmo sob a roupa de um personagem, fala de si, derramando seu estoque de experiência e significado pelo caminho; e quem ouve vai atrás, catando as palavras e juntando-as às suas, numa espécie de alquimia inconsciente que, no fim, vai inventar cada castelo de um jeito: o meu, todo escuro, e o seu, alvo feito neve. Ainda assim, embora distintos, ambos serão castelos verdadeiros e legítimos, porque eu e você, apesar de únicos, somos humanos atados pelo fio da linguagem. E isso é bonito!
Nossa Casa de Palavras
A linguagem oral não carrega nenhum artifício de imagem, como acontece em um filme no cinema. Não há caminhos estabelecidos. “Gosto de parafrasear a escritora Yolanda Reyes, que diz que cada um tece a narrativa oral a partir da sua Casa de Palavras, ou seja, a relação que tem com a língua e seus significados. É por isso que ninguém conta ou escuta uma história do mesmo jeito, e é por isso também que, ao ouvir ou contar a mesma história em diferentes etapas da vida, a gente acessa áreas distintas da nossa subjetividade, já que, à medida que vivemos, a nossa Casa de Palavras muda”, diz Ana Luisa Lacombe, atriz, escritora, narradora artística e diretora da Companhia Faz e Conta.
Magia em qualquer idade
Em uma roda de história, a palavra, a voz, a entonação, os olhares, a concessão de mundo do narrador, tudo funciona como a correnteza de um rio que permeia zonas pessoais e de penumbra que nos situam para além de nós. Nessa dinâmica de afeto, tão transformadora, há quem resgate no rio cheiros da infância, ou uma saudade adormecida, e há quem encontre, nas mesmas águas, uma sensação de aconchego ou de medo.
Isso porque a palavra dita é o elo mais íntimo com nossas lembranças, é como se, por meio dela, pudéssemos acessar o umbigo da memória. “É a relação mais genuína e embrionária que temos com os saberes da nossa experiência, de como esse saber ficou registrado em mim e pode ser compartilhado”, diz Simone Grande, atriz, narradora artística, fundadora do grupo As Meninas do Conto e da Casa da História.
Talvez por isso, muitas vezes gravamos mais e melhor histórias que nos foram contadas. “Penso que a palavra dita exige mais participação e contemplação de quem narra e de quem ouve. Mesmo quando conto uma história ancestral, as palavras que uso são as que cabem na minha boca”, diz Simone.
Há a recriação individual e coletiva, em uma dinâmica que não tem propósito certo. “Uma história não tem função, não serve para nada e serve para tudo ao mesmo tempo. É algo aberto a mil possibilidades, e, por isso, libertador”, formula a artista.
Faça silêncio, escute o rio
Basta pensar no processo de fala e escuta da psicoterapia. Ele não encerra objetivo, não tem começo e ponto final. Quem já contou mais de uma vez a própria história no divã certamente teve a sensação de enxergar algo novo em diferentes sessões.
“É o efeito eco. Quanto menos a gente racionaliza a história, mais conseguimos nos deslocar para outras percepções. Eu gosto do gesto de acolher a palavra em uma contemplação interna, um estado de silêncio e graça que abre portas para um novo saber”, diz Factima El Samra, arteterapeuta e contadora de histórias.
Por isso, contar e ouvir causos nos ajuda no autoconhecimento. E todos temos nossas narrativas. Infelizmente, e também por causa das mídias sociais, muitos acham que somente coisas extraordinárias merecem ser compartilhadas. No entanto, uma história é uma tapeçaria de instantes. A cultura indígena nos ensina isso. Para os povos originários, não existe a hora de contar história. Tudo é e conta história.
“Quando eu tinha 5 anos, meu pai me colocava sobre os ombros e me levava para ver o Solimões de manhã. Ele ficava de cócoras e, quando eu ia falar, ele dizia ‘faça silêncio, escute o rio’. Eu era criança e não sabia o que escutar. Mas depois compreendi. Meu pai dizia que o rio é sujeito de direito, tem espírito, é ancião e conta histórias. Ouvi-lo era entender que dentro de mim também corre um rio de pertencimentos, e que só contando estas memórias eu fortaleceria a mim e a meu povo”, lembra Márcia Kambeba, escritora, professora e contadora de histórias do povo Kambeba, no Alto do Solimões, na Amazônia.
Transmissão de saberes, culturas e histórias
Toda a transmissão de saber dos povos indígenas permanece oral. A oralidade e o silêncio da escuta são intrínsecos a seu modo coletivo de viver. “A história habita todos os momentos, a hora de lavar roupa, de plantar, de comer. Contamos história para resistir, enraizar nossa identidade, nossa relação com a natureza e nosso território. Se você perguntar a uma criança na aldeia quem ela é, ela contará a história de seus antepassados, rituais e feitos. Uma criança urbana raramente fará isso, mas deveria, pois a sociedade preocupa-se mais em transmitir informação”, diz Márcia.
Eu concordo. Para mim, uma mulher paulistana, essa simbiose com a oralidade, tão visceral e identitária, é praticamente inalcançável. Mas eu posso sentar-me à mesa com meu filho e contar sobre a delícia que era ir para a cama com a mesa de café da manhã já posta por minha avó, me esperando ali pertinho, madrugada adentro.
Por Vanessa Costa – revista Vida Simples
É jornalista e autora do livro infantil “As Fadas Banguelas” (Quiron Livros), uma historinha inventada com seu querido filho Samuel.
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