O pintor Henri Matisse buscava a companhia dos pássaros e das plantas para se energizar e criar; Sigmund Freud fazia caminhadas diárias e extraía vigor mental da velocidade que imprimia em suas pernas, além de priorizar as férias de verão com a família; já o neurologista Oliver Sacks apostava na análise seguida de natação, bem cedo. Ah, ele também se entregava aos devaneios no sofá depois do almoço. Sei como é bom! Nesses momentos, sinto que estou em harmonia com a porção mais contemplativa da minha alma. Protegida do que não reflete quem eu sou de verdade.
Cada um há de encontrar o que lhe faz bem, o que afasta o desassossego e traz gosto em viver. Mas que isso não se torne uma busca pelo pote de ouro idealizado, que nunca se alcança, e sim uma renovação permanente do olhar para as coisas que vão nos preenchendo e acalentando momento a momento.
Admito que esse assunto me alvoroça. A prova disso é que, vira e mexe, me pego emaranhada no seguinte pensamento: Quando chegarmos ao final da linha da nossa existência e olharmos para trás, o que fará com que a gente possa honestamente afirmar: “Valeu muito a pena! Vivi uma vida boa e significativa”? Serão nossas conquistas materiais e profissionais? Nossas buscas interiores? Os cuidados com a saúde? Os afetos cultivados com zelo e respeito? A mudança que ajudamos a cravar no mundo?
Longe de ser mera especulação, pensar sobre essas questões é fundamental para termos clareza do que nos abastece de energia vital e começarmos, já, a incorporar essas escolhas em nosso cotidiano. De maneira gentil e atenta ao que ressoa em nós.
Teia de conexões gera felicidade
Os estudiosos que vêm destrinchando o funcionamento do cérebro afirmam que a felicidade é fruto de uma teia pulsante de conexões. Assim: uma ativação cerebral acontece em resposta a um estímulo e desencadeia uma série de alterações fisiológicas (batimentos cardíacos, pressão arterial, produções hormonais etc.) que, ao atingirem a consciência, são interpretadas como o ápice do contentamento.
“Por estar associada às respostas de prazer, ao bem-estar e, inclusive, à nossa saúde, a busca por estímulos capazes de gerar esse sentimento de felicidade seria algo inerente à própria natureza humana”, afirma Ana Carolina Souza, neurocientista e sócia-fundadora da empresa Nemesis Neurociência Organizacional.
Utopia da felicidade ininterrupta
É evidente que, para alguém cogitar a possibilidade de ser feliz, é imprescindível que haja condições básicas de dignidade humana. Isso posto, podemos lembrar quão vasto é esse estado. Tal qual o vento, ele pode nos levar em todas as direções, a depender das inclinações do nosso universo particular.
“Cada pessoa conduz seu processo de felicidade por arenas distintas de vida e com modelos muito singulares. Porém, essa busca não pode se tornar uma ditadura, em que negamos nossas dores e adversidades e fingimos que a vida precisa ser ótima o tempo inteiro, o que gera uma utopia que pode desembocar na direção oposta: na infelicidade, por nos sentirmos incapazes de ser felizes ininterruptamente”, alerta Andréa Perez, docente no curso Psicologia Positiva, Ciência do Bem-estar e Autorrealização pela PUCRS, além de idealizadora e coordenadora da rede Felicidade Agora é Ciência.
E tem mais: se não tomarmos cuidado, esse objetivo nos torna egocentrados, alienados do fato de que o outro é parte fundamental dessa construção feita de inúmeros elos. “As pessoas que se importam e zelam pela felicidade de outros acabam sendo muito felizes com isso”, ressalta Andréa.
As relações que fiamos
Por muito tempo, observa Ana Carolina, focamos a importância da atividade física, da alimentação saudável e dos cuidados com a saúde para nos sentirmos bem. “No entanto, estudos mais recentes vêm mostrando que a qualidade das nossas relações sociais pode ser ainda mais importante do que todos esses fatores, que, de qualquer forma, seguem sendo válidos para a pavimentação de um futuro mais próspero”, destaca a neurocientista.
Para se ter ideia, o suporte social e o pertencimento promovem alterações autonômicas, metabólicas, imunológicas e hormonais capazes de compensar ou até mesmo amenizar as mazelas do estresse. É por isso que pessoas solitárias e isoladas se tornam mais vulneráveis e acabam adoecendo. Ana Carolina se refere ao que Robert Waldinger, psiquiatra, psicanalista e professor Zen, e Marc Schulz, psicólogo, terapeuta e pesquisador – amigos há mais de 30 anos – esmiuçam no livro Uma Boa Vida: Como viver com mais significado e realização (Sextante).
A obra apresenta as descobertas do mais longo estudo científico sobre o que realmente nos faz felizes, conduzido pela Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Com base nos resultados colhidos ao longo de mais de 80 anos, abarcando três gerações e mais de 1.300 descendentes dos 724 participantes originais, ficou evidente que, dentre todos os aspectos que estruturam a vida humana e conferem a ela a possibilidade do florescimento, um deles é, sem dúvida, o mais decisivo para a percepção da satisfação que podemos sentir: nossos relacionamentos.
Sim, são os vínculos saudáveis e sólidos que fiamos com parceiros, familiares, amigos, colegas e colaboradores que determinam nosso grau de realização, saúde e felicidade, ainda que eles sejam imperfeitos e trabalhosos. “Relações de confiança, nas quais nos sentimos confortáveis de ser
quem somos, e que trazem a sensação de pertencimento e acolhimento são fundamentais para a construção de uma vida significativa e saudável. Esse fator, inclusive, é capaz de predizer o impacto que uma pessoa terá no seu declínio cognitivo e em sua saúde física”, aponta a neurocientista.
Laços não preenchem vazios
Mas é preciso que a gente saiba, de antemão, que nenhum laço deveria carregar a responsabilidade de remediar nossos vazios e faltas. “Os relacionamentos precisam ganhar outras perspectivas, que não a de nos preencher ou de dar sentido à nossa vida interior esvaziada. As relações se tornam um verdadeiro presente na medida em que nos ajudam a entrar em contato conosco mesmos, a descobrirmos e vivermos os elementos essenciais da nossa personalidade”, afirma Marlon Reikdal, psicoterapeuta junguiano e autor de Em Busca de Si Mesmo: O poder do autodescobrimento como filosofia (Vozes), entre outros títulos.
As relações elevam o nosso bem-estar, de acordo com o psicoterapeuta, pois é a partir delas que somos capazes de nos doar de uma forma que jamais seria possível estando a sós. Também por meio delas podemos descobrir nossa força, capacidade de traçar limites e nos valorizar.
Fidelizar a si
O ego é tentado a corresponder ao que a sociedade considera valoroso. E, enquanto nos empenhamos para sermos bem-sucedidos nos diversos papéis sociais, muitas vezes agindo para agradar e ser aceitos, nos afastamos das coisas que realmente nos alimentam e proporcionam regozijo profundo. “Quanto mais o ego se dobra ou se conecta aos elementos interiores, mais amadurecida e plena a pessoa se torna”, aponta Reikdal.
Ele explica que o retorno ao primordial em nós é o que permite o desfrute de vivências significativas, que possuem efeitos duradouros em nosso íntimo e, a partir daí, na vida do lado de fora. “Amor a si, nesse contexto, tem a ver com reverenciar as verdades que nos definem, diferentemente das características da personalidade provisória que desenvolvemos para dar conta da existência na primeira metade da vida”, define.
Pode ser que leve tempo, altos, baixos e curvas até que a gente se aproxime de fato da nossa verdade interior e viva a partir dela com mais plenitude. “Não quer dizer que apenas depois dos 40 ou 50 anos é que vamos descobrir o que nos faz bem ou não, mas sim que, na maioria das vezes, precisamos ter experienciado a vida e seus enganos para começarmos a descobrir que certos valores da atualidade não são critérios seguros para basear nossas escolhas”, esclarece. “A viagem interior só ganha contornos mais significativos à medida que desenvolvemos um pensamento crítico em relação aos discursos sociais e conseguimos nos diferenciar deles, em busca de nós mesmos”.
“Costumo dizer que o atalho mais curto para a felicidade é ser quem você é, e a Psicologia Positiva permite que você acesse e seja mais de você, o que é importante diante de um contexto desfavorável, em especial das redes sociais, nas quais a comparação com outras pessoas e o afastamento de si mesmo, infelizmente, inibe que você seja mais de você, ao desejar ser mais de outras pessoas”, afirma Andréa Perez.
Extraindo aprendizado das dificuldades
É preciso lembrar que, por mais irmanados que estejamos ao nosso eu profundo, enfrentaremos dificuldades em muitos momentos. A diferença é que seremos capazes de atribuir sentido a essas experiências, e isso abrirá outro nível de percepção, um lugar muito mais interessante em nossa jornada.
“Não quer dizer que, ao modificarmos o olhar, tudo vai ser positivo ou prazeroso, mas que podemos nos empenhar em extrair um aprendizado de todas as experiências. Isso nos permite entender a vida como um convite ao autodescobrimento e à transformação interior e, por estarmos caminhando em direção ao nosso burilamento, certamente nos sentiremos mais realizados”, aponta Reikdal.
Depois de tanto estudar as causas da felicidade, Robert Waldinger e Marc Schulz também valorizam todas as tonalidades emocionais do viver e enfatizam que uma vida frutífera jamais virá a galope. “A vida boa é repleta de alegrias e desafios. Cheia de amor, mas também de dor. E podemos dizer que ela nunca acontece de fato. Na verdade, ela se desenrola com o passar do tempo. É um processo”.
Compartilhar e sentir
Mesmo sabendo o que nos devolve o viço e o entusiasmo por estarmos aqui, vivos, pode ser difícil nos manter nessa frequência, pois a mente tem a tendência a focar experiências negativas ou aquilo que não fizemos – e ficar nos martirizando por isso. Entretanto, Ana Carolina assegura que podemos aprender a focar aquilo que existe de positivo em nossa rotina. Práticas simples e acessíveis, tais como exercitar a gratidão (exemplo: pense ou escreva sobre algo positivo que aconteceu no seu dia), refletir sobre o futuro que deseja e qual o caminho para chegar lá e a valorização das relações, ajudam a equilibrar o estresse cotidiano e amainar os vieses negativos inconscientes que podem estreitar a visão sobre a nossa própria vida.
“Lembre-se ainda de situações e momentos nos quais você sentiu grande orgulho de ter participado, feito ou conquistado algo. O objetivo desses exercícios não é fugir da realidade ou ignorar os desafios vividos, mas ser capaz de ampliar a visão e se conectar com aquilo que promove bem-estar e permite a cada pessoa sentir com maior frequência sentimentos como a felicidade”, propõe a neurocientista.
Motivação intrínseca
Encontrar propósito em nossas atividades é outra forma de ver a alegria se esparramar. Acredite, esse termo, tão popular, é mais do que um discurso. Na visão da neurociência, ele seria um tipo de combustível descrito como motivação intrínseca. Ao identificar o seu propósito, uma pessoa passa a compreender de forma consciente aquilo que a move e faz com que se ligue a indivíduos e grupos que compartilham um mesmo conjunto de valores, fortalecendo o senso de pertencimento.
“Pessoas que estão conectadas a um propósito e entendem qual a importância de sua contribuição – seja ela qual for – para a comunidade possuem hábitos de vida mais saudáveis e, inclusive, apresentam maior longevidade”, lista a neurocientista.
Ainda por cima, uma vida rica em propósito inevitavelmente desembocará num belo legado. Na obra A Vida Feliz: Sabedorias antigas e espiritualidade laica (Vozes), o filósofo francês Luc Ferry chama a atenção para o rastro que vamos deixar aos que vierem depois de nós. Transmissão e partilha, segundo ele, são palavras indispensáveis para uma vida repleta, que nos beneficia justamente porque farão o mesmo por outras pessoas. Na intensa e exigente jornada da vida, bem-aventurado aquele que, de tão abastecido, derrama o bem.
Por Raphaela Campos Mello – revista Vida Simples
Jornalista. O passo lento faz bem a ela, pois assim consegue pinçar encantos miúdos e partilhá-los.
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