Segunda-feira, ponteiros se aproximando das 22 horas, minha mãe chega em casa. Seus braços espertos retiram a capa impermeável, salpicada da chuva fria de São Paulo, revelando um corpo eletrizado e solto. Sentada à mesa da cozinha, vejo aquela mulher de 72 anos, orgulhosamente grisalha, transbordar vida. Ela tinha voltado de um encontro de dança de salão.
Diante do prato recém-esvaziado e me sentindo grogue de preguiça, me espanto e me interrogo: De onde brota o ímpeto para alguém se mover, especialmente numa segunda-feira úmida, a ponto de tilintar os ossos? Pressinto que a resposta não se mostrará a menos que eu escave atrás da poesia que é o próprio corpo. Não um conjunto de ossos, tecidos e músculos que performa em uma sociedade seduzida por pódios diversos, mas aquele que “em sua potência, vulnerabilidade e originalidade afeta o mundo ao redor assim como é fruto de tudo o que lhe afetou e afeta permanentemente”, diz a terapeuta eutonista Andréa Bomfim Perdigão, autora de O Dentro e o Fora – Corpo (Patuá).
O corpo é uma casa
De vez em quando, carecemos que alguém nos lembre de que nossa morada primordial é bem mais do que suporte para cérebros inundados de pragmatismo num mundo obcecado por resultados e ostentações. Com frequência, ignoramos o nosso perseverante e misericordioso acervo de memórias, narrativas, pensamentos, sentimentos, sensações e saberes que tentam conversar conosco e sinalizar caminhos mais íntegros e verdadeiros.
O que, lamentavelmente, nos torna estrangeiros em nosso próprio lar. “O corpo é como uma casa. Muitas pessoas apenas a observam do lado de fora, mas nunca chegam a adentrá-la”, observa a fisioterapeuta francesa Thérèse Bertherat, na obra O Corpo Tem suas Razões: Antiginástica e Consciência de Si (WMF Martins Fontes).
Enquanto minha mãe recria com seu corpo os momentos marcantes do baile, penso que, enquanto aquele frisson a percorrer, ela estará viva. Estou certa. “O que é vivo se move. O movimento é a própria necessidade de manter e honrar a vida, de renová-la o tempo inteiro”, me diz Fernanda Cunha, idealizadora do Yoga Dance, segundo ela, “uma nova forma de viver que inclui o movimento de um corpo espontâneo e em conexão com tudo à sua volta”.
Um movimento vai acordando o outro
A Medicina Chinesa também atesta essa torrente de vida nos corpos benignamente inquietos, pois associa o impulso de nos movermos à energia da madeira, que, por sua vez, está ligada à primavera. Ela é a responsável pela valentia com que o broto perfura a terra buscando o céu.
“Trata-se de uma energia agressiva no sentido de dar o primeiro passo, de ter a força para realizar algo. E isso está dentro de nós também, é o que nos leva a iniciar e concluir um projeto, a fazer atividade física, sair da cama, tocar o dia e interagir com o mundo”, observa Rafael Fernandes Soares, educador físico e terapeuta integrativo, proprietário do Espaço Sadhana Danças e Terapias.
Assim, um movimento vai acordando outro e mais outro até que algo em nós se modifica e já não somos aqueles de antes. “À medida que movemos nossos corpos, criamos novas possibilidades de existir e de pensar a vida de forma criativa e móvel, percebendo-a como uma dança”, complementa Fernanda.
O que me move?
Mas, para isso, cada pessoa precisa se interessar por suas camadas mais sensíveis e sutis, o que, na visão de Soraya Jorge, introdutora do Movimento Autêntico no Brasil, pode ser combinado com outras atividades mais ligadas ao fortalecimento da musculatura e à saúde dos ossos, por exemplo. Desde que, essas escolhas sejam feitas a partir da escuta de si.
“É sobre se autorizar e legitimar aquilo que eu preciso ou encontrar o que eu preciso nesse momento”, ela afirma. Após décadas dedicadas à consciência do movimento na Escola de Dança Angel Vianna, no Rio de Janeiro, Soraya sentiu necessidade de aprimorar esse trabalho por meio da abordagem corporal que difunde há 25 anos. “O Movimento Autêntico se sustenta numa relação entre o movedor e uma testemunha sem proposição nem música. Assim se constrói um campo de confiança para que a pessoa possa se abrir e se entregar”, descreve a pesquisadora.
O que eu desejo? Mais movimento? Pausa? Se ninguém me diz o que fazer, o que eu faço comigo? Essas indagações vão emergindo durante a realização dos encontros, levando ao aprofundamento da experiência íntima de cada participante, mas sempre em relação ao outro e ao fora. “O modo como eu pesquiso o movimento, como eu sou testemunhada por alguém, como eu vou trabalhando com meus próprios julgamentos, como eu falo a minha experiência, tudo isso vai promovendo um espaço de escuta de si, de legitimidade do meu sentir, do meu mover, do meu falar”, detalha Soraya.
Perceba o seu corpo
Você também pode entrar em ressonância com seu corpo perguntando a ele, em respiros de cumplicidade, como se estivesse se dirigindo a alguém querido: “Me diz: Do que você precisa? O que você deseja? Comida, descanso, aventura, silêncio, afago, expansão?”. Esse é um ato revolucionário, subversivo até. Porque implode a lógica de que, para termos valor, precisamos “funcionar” na escala da produtividade pelo máximo de tempo possível, custe o que custar. Quando, na verdade, tudo o que a natureza em nós mais quer é ser nutrida e perpetuada com amor.
“O maior anseio e necessidade do corpo é ser escutado e visto como um mapa. Ele não mente jamais, pois tem uma sabedoria ancestral que é celular. Por exemplo, se, diante de uma proposta de emprego, você sente um peso no corpo, saia daí. Ele sabe onde tem perigo e onde não tem”, alerta Fernanda.
Ao nos percebermos a cada momento, buscando o que de potente pulsa em nós agora, podemos tecer outra relação com a transitoriedade. Talvez, substituindo a cobrança por grandes feitos pelo encantamento frente às descobertas mais singelas. “A gente é impermanente, e o habitar o corpo vem desse lugar de reconhecimento das pequenas mudanças, de poder legitimá-la e se autorizar a não só vivê-las, mas fazer delas ação. Qual é o pequeno novo que hoje aparece?”, vasculha Soraya.
Consciência na carne
Tradições milenares como a Medicina Chinesa, o Tantra e a Ayurveda nos ensinam que o corpo jamais poderia se converter numa máquina pré-programada para gerar recordes, pois ele é soma: físico, emocional, racional, energético, espiritual. “É por isso que o trabalho corporal reverbera em todas essas instâncias, em tudo o que a gente é”, reforça Rafael.
Não é difícil notar essa trama. Às vezes, as ruminações mentais são tão avassaladoras que os músculos respondem a elas se enrijecendo, como se estivessem se preparando para uma luta brutal que se avizinha. Mas daí invertemos esse fluxo e soltamos o corpo, mexendo-o do jeito mais prazeroso ou apaziguador ao nosso alcance naquele momento. E, então, passado algum tempo, começamos a ser visitados por pensamentos reconfortantes, verdadeiros socorristas ou profetas de um futuro gentil.
“Ter mais atenção aos nossos estados corporais e emocionais é a chave para enxergar com clareza a maneira como interpretamos o mundo e respondemos a ele. Assim temos mais condições para nos reequilibrar”, afirma o educador e terapeuta.
Nosso corpo é generoso
Veja como o corpo, além de maleável, é generoso. Qualquer atividade física pode atuar como uma meditação em movimento. Tudo vai depender da qualidade da nossa presença enquanto nos movemos. “A mente para de prestar atenção em vários outros estímulos simultâneos e se concentra no presente, interrompendo a dispersão de energia”, explica Rafael. Por mesclar técnicas de terapias corporais e energéticas ao ensino das danças a dois, ele ainda transmite a possibilidade de os praticantes conhecerem suas potências e suas sombras, liberarem travas corporais e emocionais, e refinarem a relação com o outro.
“Perceber o que aquele mover reverbera em nosso campo sutil nos ajuda a ter um viver mais consciente em tudo”, corrobora Fernanda. Do reencontro com o corpo movente e com tudo o que nele se movimenta – da dor lancinante ao deleite de se experimentar vivo –, nos chega a confidência de uma adepta do Movimento Autêntico que viveu, pela primeira vez, a sensação encarnada do que é compaixão. A espiritualidade impregnada de corpo, e o corpo sabendo-se espírito.
“A gente é passagem”, poetiza Soraya, nos ajudando a escutar a história de outra mulher. Uma mãe que, depois de perder o filho criança, se fechou. “Movimento é paradoxo, porque movimento e pausa vivem juntos, assim como alegria e tristeza. Eles não brigam como dualidade.” Pois, numa prática de Yoga Dance, essa mulher sorveu a música com o corpo e, depois de tempos sequestrada do tempo, sentiu o broto de uma alegria perfurar sua casca em busca do sol.
Texto originalmente publicado na revista Vida Simples (Edição 249).
Por Raphaela de Campos Mello
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