Antes de nos aprofundarmos nas palavras que preparei para este encontro, sugiro que você providencie uma xícara de chá. O calor perfumado que se desprenderá dela serpenteará o ambiente, convidando você a adentrar o maravilhoso canteiro das sensações que tratam bem do corpo e afagam a alma. Vá lá. Eu espero.
Voltou? Ótimo! Agora, perceba. O mundo continua a rugir do lado de fora, mas você serenou ou, pelo menos, mergulhou sua atenção no bebericar. Talvez, neste instante, esteja segurando a porcelana morna com as duas mãos, como se ela fosse uma cuia sagrada que você leva à boca com delicadeza, lembrando que, sim, você tem a si mesmo.
Pode ser que tenha escolhido para o momento um chá, bebida feita a partir da planta asiática Camellia sinensis. Tal qual mãe de muitos filhos, ela provê os chás verde, branco, amarelo, preto e oolong. As variações vão depender dos processos de oxidação e secagem das folhas.
Ou então tenha preferido uma infusão botânica, preparado que pode conter ervas, flores, frutas, cascas, sementes e raízes – inteiras, partidas ou moídas. Cada qual com seus benefícios e sabores únicos, a espelhar a incrível diversidade da natureza com seu leque de propriedades medicinais e aromáticas.
Preparar um chá é uma arte a ser apreciada
A beleza dessa escolha é que ela vem embalada em uma série de cuidados. “É preciso cuidar da quantidade de folhas, da temperatura da água, do tempo de infusão, da xícara em que se quer servir, do acompanhamento. Preparar um chá é momento de entrega, podemos transformá-lo até mesmo numa meditação ativa”, enaltece Eloína Telho, chazeira e instrutora na Escola de Chá.
Seja qual for sua preferência, você estará bem acompanhado e, saiba, sujeito a atravessar “portais” para estados internos e físicos dos mais variados, uma vez que nas plantas pulsam diferentes energias, e os chás e as infusões são a forma líquida delas.
“Quando nos conectamos com aquilo que estamos buscando, sentindo nossa intuição, nossos anseios e nosso corpo, o que nos move, do que estamos precisando hoje, como queremos nos sentir, abrimos o nosso armário de chás e descobrimos ali muitos mundos”, observa Dani Lieuthier, pesquisadora, consultora, fundadora do Instituto Chá e proprietária da Caminho do Chá.
Depois de muito pesquisar, inclusive de morar em fazendas produtoras de chá na China, na Turquia e na Tailândia, ela não tem dúvidas de que as plantas são catalisadoras de estados emocionais e podem nos aproximar das camadas mais profundas do nosso ser. Enquanto encadeia o pensamento, ela bebe uma infusão de lavanda, aquela belezura lilás que nos ajuda a lavar a alma e a transcender inquietações e dilemas.
Chás acordam afetos
A literatura bem se serviu dessas possibilidades. Marcel Proust, autor do clássico Em Busca do Tempo Perdido, aceitou um chá em visita à mãe, e eis o que se sucedeu: “Um prazer primoroso invadiu meus sentidos e imediatamente as vicissitudes da vida tornaram-se indiferentes para mim. Essa nova sensação teve em mim o efeito que o amor tem de me encher de uma essência preciosa”. A partir dessa epifania,
ele revisita sua história desde a infância, povoando de reminiscências nada menos do que sete volumes.
Chás e infusões costumam mesmo conter altas concentrações de memória afetiva. Afinal, a intimidade com as plantas e seu uso para combater males e proporcionar bem-estar vem sendo transmitida pelo fio que une gerações. Há quem chegue a três gerações atrás, como é o caso de Dafne Jazmin, plantadora de Clitoria – excelente antioxidante – e tea blender da Chá Azul.
Sua bisavó paterna plantava Cidró, ou Erva-Luiza, no terraço da casa dela, em Buenos Aires. Os descendentes preservaram a tradição cultivando essa planta nativa da América do Sul – boa para a digestão ou para relaxar – em todos os endereços onde viveram.
Abençoada, ela conserva uma segunda herança ainda mais vívida. “Tem uma roseira plantada pela minha outra bisavó na casa onde ela vivia e onde hoje fica meu ateliê de chás. Colho as rosas e as levo diretamente para a xícara quando preciso elevar a autoestima e a aceitação interior”, revela Dafne.
Conexão com a essência
Diferentemente de Dafne, a sommelier de chá, Alessandra Pinheiro, da Encontro com o Chá, não recebeu esse saber das mãos de suas antepassadas. Teve de ouvir e validar o próprio instinto. Em meio a uma crise existencial, ela buscou se alimentar adequadamente e acabou fazendo um curso de gastronomia funcional. Foi quando descobriu o fascinante mundo dos chás. Ela visitou regiões produtoras na China e voltou de lá transformada por essa cultura milenar.
“Nesse encontro tive um grande ensinamento, para além das propriedades medicinais do chá. Pude me conectar com minha essência e com aspectos imprescindíveis para a nossa sobrevivência, como paz, harmonia, respeito, tranquilidade, pureza, simplicidade e alegria genuína”, ela lista.
Boas escolhas incluem a natureza
É por isso que a pressa e o pragmatismo destoam do sutil reino dos chás e das infusões. Há muito ali para ser desvendado e degustado com calma, como propõe o movimento Slow Tea Brasil, coletivo encabeçado por Dani Lieuthier.
“Além de valorizarmos as tradições e os conhecimentos de cura pelas plantas, perpetuados pelos povos indígenas, nos envolvemos com projetos sociais e ambientais, fomentando uma cadeia sustentável que também valorize o pequeno produtor e seu cultivo livre de veneno”, conta Dani.
Um sonho que ela realizou foi o projeto Brasil Mate, parceria entre Sebraes e produtores. “Olhamos para a erva-mate como uma planta de poder brasileira ainda pouco trabalhada”, define, alimentada pelas perspectivas desse mercado.
Ingredientes frescos e orgânicos
Claro, quanto mais frescas e oriundas de cultivos cuidadosos e naturais, mais ricas serão as matérias-primas e, consequentemente, sua capacidade de nos beneficiar. Felizmente, os cultivos orgânicos e agroflorestais estão crescendo em nosso país, como também os negócios artesanais. Uma maravilha para todos os envolvidos, incluindo os ecossistemas.
E os “chás de saquinho” nisso tudo? Bem, eles se mantêm como a opção mais prática e, por esse motivo, presentes em muitas residências. Mesmo assim, podemos privilegiar sachês biodegradáveis ou compostáveis e exemplares minimamente processados e abastecidos com insumos de qualidade. Mas também muitas ervas podem ser cultivadas em vasos mesmo em apartamentos. Um jeito simples de ter plantas in natura à mão.
Farmacinhas particulares
Essa conversa é, sem dúvida, romântica, mas não é porque uma bebida é natural que ela só nos fará bem. É preciso moderação e conhecimento, sobretudo de como cada planta afeta nosso organismo. Claro que podemos preparar chás e infusões pelo simples prazer de saboreá-los, tornando a ocasião um momento recreativo do dia.
Mas também podemos recorrer a elas como farmacinhas particulares, contando com seu poder medicinal para aliviar inúmeros quadros: acalmar, digerir, desinflamar, expectorar, estimular e revitalizar. Há extensa literatura sobre isso, o que pode ser suficiente para nos guiarmos nesse saber ancestral. Mas, se houver necessidade de prescrições específicas, vale a pena se consultar com fitoterapeutas, terapeutas ayurveda ou especialistas em medicina tradicional chinesa.
Um chá para cada momento
Carlos Alves Soares, engenheiro agrônomo especializado em plantas medicinais, autor de A Cura que Vem dos Chás (Vozes), recomenda para as manhãs chás energéticos, ricos em cafeína, como chá preto, chá verde, chá mate e chá de canela; depois do almoço, um chá digestivo, com o de gengibre, de capim-santo, de maçã ou de erva-cidreira; à tarde, algo que espante a fadiga, como chá verde ou preto; após o jantar, o plano é relaxar, então os mais indicados são camomila, erva-doce ou hortelã-japonesa. Você pode utilizar 5g da planta para cada 100 ml de água de boa qualidade.
“Não podemos esperar milagres das plantas. Se você não tem uma alimentação saudável e não faz atividade física, não adianta tomar baldes de determinado chá que falaram ser emagrecedor. Leia rótulos, veja o que mais tem dentro desse chá”, alerta Luciana Maira, da Chá Contigo, especialista em blends
de chás e infusões artesanais inspirados no universo feminino. Ela gosta de partilhar com os seus o chá
que se segue ao almoço, “só para estender o tempo do papinho da família reunida”, confessa.
Mas também não dispensa os preparos para honrar sua solitude, para “parar respirar e se encontrar”. Nessa hora, a recordação materna se acende. “Na infância, lembro-me de minha mãe fazendo camomila para dormir e relaxar, boldo para a digestão, espinheira-santa para o estômago. Na faculdade de nutrição, segui por esse caminho de saúde.” E você, também vai por ele?
Por Raphaela de Campos Mello – revista Vida Simples
É jornalista e apaixonada por jogos de chá antiguinhos.
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