Foi preciso pegar três voos, carona em um helicóptero do modelo Leonardo AW139 e ainda um curto (mas tortuoso) trajeto em uma 4×4 potente. Chegar ao KOKS, restaurante com duas estrelas Michelin nas remotas Ilhas Faroe, foi difícil. Mas ao sentar ali na antiga casa de agricultores que hoje se tornou o salão e a cozinha liderada pelo chef Poul Andrias Ziska em uma paisagem isolada, cercado por um lago de águas cristalinas e circundado por um vale verdejante onde passeiam galinhas e ovelhas, tudo valeu a pena.
Claro que a comida de Ziska, criativa e bem elaborada, focada em ingredientes locais, como o cordeiro e as muitas ervas que brotam no entorno, ajuda a justificar o esforço para estar ali. Mas a dificuldade de chegar — e a consequente recompensa da paisagem — é provavelmente o que leva milhares de pessoas ao KOKS todos os anos. Em um arquipélago com menos de 50 mil habitantes, o que explica que um restaurante instalado ali se torne um destino gastronômico capaz de justificar tanto esforço?
Pois é: no mundo da gastronomia, vivemos um tempo de “quanto mais longe, melhor”. Se antes os destinos de difícil acesso já despertavam maior interesse por serem mais custosos de desbravar e representavam um desafio mais valioso na corrida gastronômica mundial, a pandemia fez essa sensação ficar exacerbada. Lugares recônditos ganharam novo destaque no cenário global. Abaixo, alguns que valem a visita — e o esforço para que ela aconteça.
MIL (Moray, Vale Sagrado, Peru)
Como chegar: voo até Cusco e depois um carro ou van por uma hora e meia pelos vales dos Andes. As estradas não são ótimas, mas a vista compensa.
A localização do MIL em de Moray, cercado pela Cordilheira dos Andes, já é em si um atrativo. O restaurante dos chefs Pía León e Virgilio Martínez (do Central, em Lima) foi erguido em um preservado complexo arqueológico inca a 3,500 metros de altitude com seus famosos terraços redondos, os “muyus”, onde povos originários puderam se aproveitar dos diferentes microclimas para suas experimentações agrícolas no decorrer dos séculos. As diferentes partes do terreno em socalcos podem ter variações de temperatura que chegam a 15ºC — é ali que a equipe maneja dois hectares para o fortalecimento de sementes e resgate de espécies antigas.
Os ingredientes servidos ali, aliás, vem de pesquisas e trabalho feito com as comunidades locais, para trazer aos visitantes não apenas os produtos, mas as técnicas usadas pelos incas. Um dos pratos, por exemplo, contempla batatas andinas que são assadas em pequeno forno de argila comestível conhecido como huatia em quéchua e que, levado ao fogo, é capaz de extrair todo o dulçor e o sabor dos tubérculos com as cinzas e o calor da brasa que aquece o solo.
Do famoso sal de Maras ao chocolate feito com a raríssima variedade de cacau chuncho (o espaço também abriga uma pequena chocolateria), as técnicas desenvolvidas nas receitas servidas aos visitantes se inspiram nos conhecimentos passados de geração para geração entre os povos das montanhas. Com as muitas plantas que brotam nesta altitude, são feitas também infusões e coquetéis para acompanhar o excelente menu, que é servido apenas aos almoços, para que os visitantes possam apreciar a vista com a luz do dia.
Hisa Franko (Kobarid, Vale do Soča, Eslovênia)
Como chegar: voo para Veneza (Itália) ou Liubliana Eslovênia), e dali uma hora de carro por boas estradas.
São quase 30 minutos percorrendo as estradinhas perfeitas a partir da fronteira da Itália para chegar ao restaurante cercado pelos vales verdes da região idílica do cristalino Rio Soča, na Eslovênia. O casarão na área rural da pequena Kobarid permanece o mesmo há pelo menos três gerações, mas a comida servida ali mudou muito nos últimos anos. Culpa da chef Ana Roš, que comanda a cozinha do Hisa Franko servindo nos pratos o esplendor dos ingredientes que são reflexo direto do entorno.
No outono, vigente agora no hemisfério norte, o menu é composto por abóboras, castanhas e cogumelos que são coletados por um casal de fazendeiros que hoje é o principal fornecedor de Roš. As receitas são coloridas, inventivas, com composições únicas de sabor. Trazem influências da Gastronomia eslovena, mas sem deixar de olhar para os vizinhos (como a Itália) ou o mundo.
A chef ficou mundialmente conhecida depois de ter participado de um dos episódios da famosa série Chef’s Table (na Netflix) e ter sido reconhecida como a melhor chef feminina do mundo em 2017, pelo World’s 50 Best. Com duas estrelas Michelin, é um desses restaurantes diferentes de tudo, localizado em uma paisagem que convida o visitante a ficar — neste caso, aliás, há poucos quartos na parte superior da antiga casa para pernoites. Para ter em conta: Roš é quem costuma preparar o café da manhã.
La Cozinha (Barra Grande, litoral do Piauí, Brasil)
Como chegar: voo até Parnaíba, uma hora de carro até Barra Grande; ou chegar em Fortaleza ou Teresina e encarar 5 horas de carro.
Não é difícil perceber por que o chef Hervé Witmeur decidiu trocar sua Bélgica natal para viver a vida no sossego de Barra Grande há 10 anos: o pouco explorado litoral piauiense é um paraíso de sol e vento.
Aliás, foram os bons ventos que trouxeram Witmeur à praia de areia clara e mar tranquilo pela primeira vez. O atrativo foi o kitesurf (esporte que tornou Barra Grande mundialmente conhecida) que ele pratica há anos. Quando chegou ali, se apaixonou e não quis mais sair. Convencer a esposa e dizer adieu à família (e ao restaurante do pai, onde trabalhava) não foram tarefas fáceis, mas hoje a consolidação do La Cozinha é prova de que o caminho foi bem escolhido.
O restaurante — que fica dentro de uma pousada confortável com bungalows em estilo Mediterrâneo — serve pratos casuais com ingredientes cultivados pelo próprio chef em uma fazenda de 14 hectares próximos ao Rio Parnaíba, com cerca de 900 espécies.
A Tábua do Pescador, por exemplo, reúne frutos do mar e peixes do dia (com camarões grelhados e um ceviche) em porção para ser compartilhada. Há ostras, cuscuz quentinho, peixe grelhado com farofa de farinha de macaxeira. A comida é fresca e deliciosa. E as espreguiçadeiras em torno da piscina um bom convite à um cochilo depois da refeição.
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