O quartinho onde dormia, quando criança, não era mais do que uma despensa no fundo da cozinha. Ali eram armazenados panos de chão, vassoura, latão de farinha. No canto da parede, uma cama. Flavia Wenceslau, que perdeu a mãe aos 4 anos e enfrentou conflitos com a madrasta, ainda se lembra bem onde a menina abandonada que ela foi passava as noites.
O retrato desse tempo se tornou mais vivo quando, grávida do terceiro filho, e atravessando uma separação, Flavia recorreu à terapia. Havia passado por duas cesáreas e queria um parto natural. “Eu entrei em contato com essa memória de me sentir insignificante, de achar que meu lugar no mundo era o de coisas que não valiam a pena ser vistas”.
Como acreditar na sua força e no seu próprio valor se tinha sido colocada para ocupar o mesmo espaço dos itens de menos valia da casa? A criança dentro dela ainda esperava por alguém que a enxergasse. Ao acender a luz desse quartinho mal iluminado dentro de si, Flavia abriu a porta para libertar a menina que foi um dia. “No trabalho de parto, eu pude sentir que estava vencendo essa barreira”. A prova: José nasceu de parto natural domiciliar.
Flavia Wenceslau é, hoje, uma cantora reconhecida pela sensibilidade poética de suas composições. Admiro essa capacidade que ela tem de cantar tão bem o amor e a esperança, mesmo tendo sido tão pouco alimentada com esses sentimentos na infância. “A arte me consolou muitas vezes, é um alento que me dá a capacidade de não fugir, de lidar com aquilo que eu preciso”, ela me diz.
A infância permanece em nós
No livro Acolhendo sua Criança Interior (Sextante), a psicóloga alemã Stefanie Stahl afirma que os primeiros anos de vida são importantes porque é nesse período que se forma a estrutura cerebral, com todas as redes neurais e sinapses. “Por isso, o que vivenciamos nesse estágio, com as pessoas que nos são mais próximas, fica gravado em nossa mente”.
Com origem na psicologia analítica, o termo ”criança interior” representa a forma como cada um elaborou e internalizou os acontecimentos na vida. “São aspectos infantis, inconscientes, e é através dessa lente que nós vemos o mundo hoje. Seguimos pensando, sentindo e, sobretudo, reagindo a partir da criança que fomos”, explica a psicóloga e educadora parental Laura Rath, que tornou o assunto ainda mais claro ao conversar comigo para esta matéria.
Necessidade de tomar consciência da nossa história
A influência na vida adulta está ligada à forma como interpretamos aquilo que vivemos na infância. Segundo Laura, a partir das nossas conexões cerebrais, moldamos os nossos padrões de comportamento. Por isso, tanto eu quanto você reproduzimos o que experimentamos. E, muitas vezes, nem paramos para pensar na origem do que nos aflige ou porque reagimos de determinadas maneiras.
Isso acontece porque fomos pouco ensinados a reconhecer e nomear o que sentimos. Nossas emoções não costumam ser protagonistas nas cenas da vida infantil e ficam por ali passeando como figurantes, ávidas por uns minutinhos de fama. Eis que, já adultos, quando focamos naquilo que nos faltou, retroalimentamos o problema e não o resolvemos. O jeito é abrir um diálogo interno sincero para identificar e quebrar esses padrões, alerta Laura. “Se a gente não se trabalhar agora, acaba perpetuando isso nas nossas relações familiares e com os nossos filhos. Tomar consciência da nossa história, por mais dura que seja, é urgente“.
É preciso enxergar o nosso lado sombrio
Em seu livro, Stefanie Stahl chama a criança interior ferida de criança-sombra. E afirma que é preciso enxergar o nosso lado sombrio para que as emoções reprimidas não ajam em nosso subconsciente. “O problema é que a criança-sombra é como uma criança real: quanto menos atenção recebe, mais atenção quer; se lhe damos a atenção devida, ela fica satisfeita e vai brincar sozinha por um tempo”, escreve.
Ao olhar com respeito e reverência para a sua própria história, entendendo que só recebeu, das pessoas com quem conviveu, o que cada uma tinha para dar, Flavia sentiu a dor suavizar. Foi assim que conseguiu se libertar do passado. “Eu compreendo que sou uma mulher adulta e aquela criança ferida cresceu. As marcas vieram comigo, mas eu, como pessoa, fui crescendo”.
É preciso acolher o passado
Quem também passou por esse processo foi a terapeuta Bianca Fiore. Por não dar ouvidos às suas dores, passou por fases de projetar nos parceiros com quem se relacionou uma série de comportamentos imaturos e frustrações infantis. Foram anos de labuta pessoal para aprender a lidar com os traumas da infância. Hoje, Bianca não se esquiva de revelar que foi abusada aos 5 anos por uma pessoa da família. Ela conta que nunca esqueceu e sempre soube que havia algo errado com o que lhe aconteceu. Levou anos, no entanto, até a adolescência, para contar aos pais o que tinha sofrido.
“Eu percebia, na minha juventude, que não era feliz, estava triste e rancorosa”, relembra. Foi nas sessões de terapia transpessoal que ela travou contato com o conceito da criança ferida e passou a enxergar a si com mais clareza. “Foi quando eu pude olhar para essa criança, escutar o que ela gritava dentro de mim”.
O processo de acolher as dores do passado se deu com o suporte da psicologia e de outras ferramentas, como meditação, florais de Bach, yoga, massagem bioenergética. “Foi o que me auxiliou a dar um colo para esses traumas, além do apoio que recebi da minha família. Foi fundamental para que eu tivesse um lugar sadio onde pudesse ser vulnerável”.
Bianca sabe que superar um trauma não é fácil, mas possível. “É como um espinho cravado no coração, que dói, mas o organismo se acostuma, fica até amortecido… o momento de retirar o espinho é muito doloroso, mas, depois que sai, cicatriza”.
Nossa infância afeta quem somos hoje
Para Laura Rath, não há como dar colo à criança que fomos sem trazer para a consciência o fato de que a nossa infância afeta muito quem somos hoje. “Nós não conseguimos transformar aquilo que não conhecemos, então o primeiro passo é conhecer a nossa história”, garante.
No meu caso, foi com a maternidade que parei para revisitar a minha infância. Ser mãe é não me deixar escapar de mim mesma. Volta e meia, meus filhos me apresentam uma releitura da minha própria história. Flavia concorda que os filhos são como um portal. Nos momentos iniciais de cuidados com a primeira filha, ela se deu conta de um sentimento muito forte que carregava: a presença da sua própria mãe, com quem não pôde conviver. “Eu comecei a lembrar da minha mãe, como se algo tivesse acendido dentro de mim. Nunca havia entrado em contato com ela dessa forma, com o que dela ficou em mim”, recorda.
Um dia, a dor transborda
A autora de Acolhendo a sua Criança Interior explica que as nossas emoções reprimidas tendem a se acumular. Em algum momento, já não seremos capazes de ignorá-las. “As pessoas com bom acesso aos próprios sentimentos têm muito mais facilidade para refletir sobre si mesmas e resolver seus problemas do que aquelas que os reprimem”, afirma Stefanie.
Escrever, falar a respeito, buscar auxílio profissional são algumas dicas que Laura nos dá para ajudar a reconhecer e validar a nossa história. “Quando eu era criança, fui vítima, agora eu sou adulta e me responsabilizo pelo que eu vou fazer com o que aconteceu comigo”. Se já não somos crianças, é hora de nos apropriarmos do caminho da transformação que queremos trilhar.
É assim como se sente Bianca. Hoje, casada, com um filho e formada em Psicologia, ela assume o lugar de cuidar de si e da sua felicidade. Assim, auxilia outras pessoas e as encoraja a se autoconhecerem e entrarem em contato com suas dores para resolvê-las, desenvolvendo a maturidade e se colocando no lugar do adulto responsável por si mesmo.
Compreenda a sua história
Responsabilizar-se nada tem a ver com justificar ou ignorar os traumas sofridos. Não se trata de culpar ou inocentar ninguém, mas compreender a história como foi. É assim que temos condições de seguir adiante. E, ainda que a gente escreva o nosso livro da vida, há outro muito maior do que nós. “Existe um fio que liga todas as histórias, que é a história da evolução da humanidade na Terra. A nossa história individual está ligada à história coletiva”, conclui Flavia.
O quanto de todos nós subsiste na trajetória de cada um? De repente, vejo: a menina na despensa ligada à criança que você foi, à garotinha de 5 anos que sofreu abuso, à menina recalcada que eu era. A cura de uma também pode se revelar como a cura de outra. A cada quartinho interno mal iluminado cuja porta se abre, uma criança ganha, finalmente, a chance de se libertar e crescer.
Texto originalmente publicado na revista Vida Simples (Edição 249).
Por Luisa Sá Lasserre
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