A história começa assim: uma pessoa passou parte da infância e da adolescência desejando conhecer a Torre Eiffel, em Paris. Entretanto, quando expressava isso a alguém, costumava ouvir que seria muito caro, que ela não falava francês, que os parisienses eram antipáticos e mais um monte de oposições.
Mais tarde, já crescida, ela quase comprou uma passagem, mas foi convencida de que esse dinheiro faria falta no dia a dia e, por isso, abandonou a ideia. Quis também trabalhar com algo que amava fazer, mas não era tão comum ou, à vista de muitos, pouco rentável financeiramente, que acabou se convencendo a atuar na mesma área em que outros parentes seus já atuavam.
Sonhou também com um amor desses de cinema, avassalador e que durasse muito tempo, quem sabe a eternidade, mas teve medo de se lançar toda vez que conheceu alguém bacana, porque soube que a prima da vizinha da tia do amigo da mãe de um conhecido tinha sofrido muito com uma ruptura amorosa e que ninguém merecia passar por isso.
Também optou por não ir mais ao parque com medo de ser assaltada; nem quis mais contemplar o pôr do sol, para proteger os olhos da radiação ultravioleta. Mais para o fim do enredo (atenção! Contém spoiler!), essa mesma pessoa dá uma olhada para trás e sente um vazio no peito. Percebe que não vive o que deveria viver; que sua criança interior não sobreviveu à passagem do tempo; que falta alguma coisa, ou melhor, muitas coisas; que ela ficou parada e não sabe agora como sair do lugar. Principalmente, percebe que não se permitiu, que não se deu a autorização para viver.
Criação negativa gera inseguranças
A história que conto acima foi inventada para ilustrar o tema desta matéria. Mas, convenhamos, você e eu já conhecemos muitas iguais a essa e vimos seus desdobramentos na vida real. Talvez você já tenha passado por algo assim ou ainda passe. Eu, com absoluta certeza, já me enquadrei em muitos exemplos desses.
Afinal, infelizmente, são muitas as pessoas que não se acham dignas e merecedoras de algo, que vivem a se autossabotar, a negar suas próprias potências. A verdade, como ressalta o psicólogo clínico Artur Scarpato, é que nascemos como uma semente carregada de potenciais. Dentre eles, existe o potencial genético, aquele que se relaciona ao nosso futuro e que surge por parte de quem nos cria, da rede de relações sociais em que crescemos e o nosso desejo pessoal, o qual encontrará desde cedo forças favoráveis e dificuldades.
E, mais uma vez, é na infância que se estabelecem as podas e os bloqueios que irão impactar a nossa existência. “A criança nasce livre e curiosa. Quer experimentar e explorar a vida, os objetos, as relações. Ela não cria expectativa de estar certa, de ganhar algo ou de chegar a algum lugar, ela só vai”, aponta Gabriela Modesto, terapeuta especialista em saúde mental.
No entanto, isso muda por volta dos 3 ou 4 anos. Já consciente das pessoas e suas opiniões, a criança começa a entender quando é aceita e quando não é, pois os adultos deixam isso muito claro: ‘que feio’, ‘mamãe fica muito triste quando você faz isso’, ‘porque fez errado’, ‘você é burra? nunca vai conseguir nada’ e por aí vai (sim, os adultos podem ser cruéis).
Ambiente acolhedor impulsiona o potencial da criança
Assim sendo, como explica a terapeuta, se uma criança é educada em um ambiente no qual é constantemente estimulada a fazer, errar e aprender, ela não desenvolve o medo do erro. Portanto, continua explorando as possibilidades e depois, na adolescência e na vida adulta, acaba por escolher os caminhos com os quais tem mais afinidade, que representam quem ela realmente é.
“Por outro lado, se a criança é educada em um ambiente com rígidas noções de ‘certo ou errado’, ‘feio e bonito’, ‘útil e inútil’, vai ser mais difícil experimentar qualquer coisa que esteja fora do que é ‘aceito’. A criança entra no modo de defesa, que é o que a maioria das pessoas chama de sabotagem. Ela deixa de fazer o que gostaria e passa a fazer o que esperam dela”, explica a especialista.
O que vemos, continua a explicar, são pequenos que preferem usar uma roupa que odeiam a “perder a aprovação” dos pais. E, quando adultos, acabam cursando uma faculdade que não queriam, mas que seus pais desejavam. Dessa forma, troca-se o bônus equivocado da aprovação e reconhecimento alheio pelo ônus da autoestima negativa.
Libertando-se dos traumas
Como sabemos, precisamos nos permitir, acreditar em nós, no nosso potencial e nos autorizar. Mas como fazer isso verdadeiramente, além do discurso? Em primeiro lugar, precisamos nos libertar dos traumas, sejam familiares ou pessoais, e que nos limitam a viver aquilo que somos. Ao não sabermos lidar com os eventos traumáticos, eles nos fazem prosseguir na vida de forma parcial e aprisionados por aquilo que nos aconteceu.
Como enfatiza Artur, todo trauma nos tira do estado de segurança e nos coloca em estado crônico de ameaça, com defesas ativas, seja em hiperativação ou hipoativação. Por seguirmos cristalizados em estado de ameaça, ambas as situações deixam nossa potência criativa prejudicada.
“Os traumas criam memórias que organizam padrões persistentes compostos de crenças negativas, comportamentos disfuncionais, afetos e experiências corporais ruins que se repetem. Essas memórias traumáticas não se transformam ao longo dos anos, permanecendo cristalizadas na rede de lembranças, mas disparando as mesmas reações problemáticas sempre que algo do presente traz o passado”, explica.
Autoaceitação é peça chave para mudança de comportamento
Como consequência, temos as crenças negativas, as quais geram uma avaliação bastante prejudicada de nossa capacidade de lidar com o mundo e de nos enxergar. “Essas crenças negativas permanecem em nossa mente, muitas vezes inconscientemente, e desse lugar escondido exercem uma influência perversa, contaminando escolhas e ações, frustrando a realização de nosso destino e de nosso potencial“, garante Artur.
O trabalho terapêutico para o processamento de memórias traumáticas, inclusive, é uma grande ferramenta para libertar a pessoa para viver o presente como experiência inédita e não mais como uma ininterrupta repetição de um passado doloroso, permitindo-a explorar o futuro, o propósito de vida e a realização.
Mesmo assim, estando todos nós diante de uma avassaladora era digital, precisamos monitorar também nosso comportamento. “Nas redes vivemos um grande julgamento. E, como sempre estamos julgando, o julgar faz com que queiramos que as pessoas não nos observem. Com o medo do julgamento alheio, nos colocamos numa posição muito vulnerável. E, ao não olharmos para nós e não nos aceitarmos, também nos julgamos e nos sentimos culpados por não ser o que gostaríamos de ser, de fazer o que gostaríamos de fazer”, salienta a terapeuta holística e consteladora familiar Claudia Valeria.
Experimente coisas novas sem medo errar
Outra forma de começar a se libertar da impotência diante da existência e ir de encontro a si própria é criar situações e ambientes onde possa fazer, errar e aprender. Essa é a dica da terapeuta Gabriela Modesto. Ela lembra que certa vez um colega comprou patins para seus três filhos e os levou ao parque. Ao começarem a andar, levaram muitos tombos e, com medo de errar, de passar vergonha ou ser alvo de chacota, logo começaram a se sentar, reclamar e arrumar desculpas para não andar com os patins. Ao perceber o que de fato estava acontecendo, seu colega criou um campeonato: quem caísse mais ganhava um sorvete.
“Muitos tombos e risadas vieram depois disso e, certamente, a intenção dele não era machucar seus filhos, mas, pelo contrário, estimular que experimentassem, que se permitissem vivenciar aquela experiência, sem ficarem presos em ter de acertar. Por isso digo que só é possível se libertar da ‘falta de autorização’ quando entendermos do que estamos nos protegendo: medo da crítica? Medo do fracasso? Medo do que vão falar? Medo de perder a aprovação de alguém importante? Mas isso não é fácil, afinal são anos e anos escondendo o que realmente somos. Então comece de um jeito simples: experimentando. Comece fazendo algo que você sempre desejou, mas alguém te disse que não deveria, ou você tinha medo do que as pessoas iriam falar”, sugere ela.
Seus desejos importam
Quando minha esposa e eu descobrimos a gravidez da nossa primeira filha, oito anos atrás, não sei se ouvimos mais felicitações ou gente dando pitacos e apontando qual seria a pior idade para a criação. Apaixonados por família grande, soubemos ignorar os conselhos inúteis e tivemos nos anos seguintes mais duas filhas. E, agora, a quarta criança que irá completar a nossa família está a caminho, desafiando a tia que fala que o mundo está muito perigoso para ter filhos ou quem adora comparar uma criança a gastos financeiros.
De verdade, não nos interessa se um a mais na mesa resultará em mais gastos. Não é que, como se diz por aí, a vida esteja ganha. Mas, sim, onde focamos nossa energia. Nesse caso, nos motiva o tanto de afeto, beleza, alegria e aprendizados que a vida nos proporcionará. Nos interessa, sim, que nossa vontade, que nosso sonho, que nossos desejos fluam sem obstáculos.
Quebrar paradigmas não é um processo fácil
Se foi fácil ter essa consciência? A resposta é: claro que não. Mas faz parte da prática do autoconhecimento continuar crente de que seus desejos importam, que o que você é importa, e de que você é capaz de conquistar o que deseja, o que sonha, o que tem vontade.
“Quando a gente entra em contato com a gente mesmo, com nossas questões mais profundas, com nossos medos, com o que realmente nos impede de assumir nosso desejo ou de buscar nosso desejo, quanto mais conhecemos o porquê de travar, maior a possibilidade de fazer diferente”, enfatiza a psicóloga, psicanalista e especialista em casal e família Viviane Lajter Segal.
Como ela mesma aponta, é claro que não existe fórmula mágica, mas uma das coisas possíveis e importantes a serem feitas é vivenciar o processo de análise para descobrir os pontos cegos em nosso inconsciente e parar de repetir o padrão. “É um processo muito difícil, muitas vezes doloroso, de quebra de paradigmas, estigmas, percepções. Para poderem se autorizar, desejar, serem quem são, pois a nossa vida é massa, precisamos ter potência e viver o mais honestamente possível conosco.”
Tenha consciência de suas atitudes
Precisamos igualmente não apenas acreditar em nosso potencial, mas estarmos preparados para reconhecer o impacto de nossas decisões no dia a dia. Claudia faz questão de lembrar que somos cada vez mais livres para fazer escolhas e cada vez mais despreparados para escolher, justamente porque esquecemos das consequências e do impacto que elas causam.
“Então, para mim, o mais importante é assumir as responsabilidades pelas coisas que a gente faz e olhar para essas colheitas tão importantes. Todas as emoções internas que vêm junto e a gente não dá muito respeito. Isso vai fazer com que você cada vez mais tenha autorização de se permitir acreditar em si, porque você vai começar a crer que é capaz de fazer escolhas melhores”, garante a consteladora.
Autoestima é essencial para nos expressarmos ao mundo
Quem expressa pensamento semelhante é Gabriela. Ela destaca que nossa potência de vida está dentro de nós, mas a capacidade de expressar essa potência no mundo está ligada à nossa autoestima.
“Uma maneira de reconhecer se estamos conseguindo expressar toda a nossa potência de vida é avaliar se nossas escolhas estão alinhadas com nossos sonhos e desejos: assim, nos sentimos vivos, fortes e seguros, mesmo quando tudo parece dar errado, pois a motivação e determinação não estão ligadas à aprovação externa e, sim, ao que é importante para nós. Em vez de ver o erro como um fracasso e um ponto final, a pessoa desenvolveu a capacidade de aprender com o que passou. E quanto mais ela segue em frente e supera os obstáculos, mais forte e corajosa se sente, até alcançar seus sonhos e objetivos, e então sonhar cada vez mais alto”, diz.
Do meu lado, tal como Claudia me explica, também acredito que a vida é quântica. Somos grandes antenas, captando sinais sutis e escolhendo em qual frequência queremos estar. Celebro a potência de vida pela forma que encaro cada segundo em que tenho a oportunidade de aqui estar. Há dias para lá de cansativos, claro, e as provações batem à porta. Ainda assim, se sintonizo alegria, é alegria que o mundo me traz; se sintonizo confiança em mim mesmo, o universo me traz sucesso; se sintonizo coisas boas, meu hoje e meu amanhã serão consistentes. Como um rio, a vida flui quando me autorizo a ser, a viver e a sentir. Vamos nessa?
Por Gustavo Ranieri – Revista Vida Simples
Conta que escrever este texto veio em um momento muito especial, em que celebra a potência de todas as suas escolhas e as de sua família.
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