Dói o amor não correspondido. Dói romper uma relação. Dói não fazer parte. Dói o drama dos refugiados e dos ianomâmis. Dói não ter o pão. Dói a palavra pontiaguda lançada contra o coração. Dói a coluna. Dói a cabeça. Somos cotidianamente atravessados por fatos e experiências que nos machucam de alguma maneira. Podemos até seguir com a fantasia de que o bem-estar será preservado, ansiosos e prontos para desativar qualquer sintoma contrário ao alívio instantâneo, mas esse é só um roteiro de ficção.
Na vida real, mais cedo ou mais tarde, a ficha cai: a dor faz parte do currículo de todos nós. Negar esse aspecto não nos fará melhores nem mais felizes, critica o livro Sociedade Paliativa – a Dor Hoje (Vozes), de Byung-Chul Han, famoso filósofo sul-coreano radicado na Alemanha e já conhecido por outros livros que tratam das questões contemporâneas com sinceridade implacável. Em sua obra recente, o autor aborda como a mania de curtição das mídias sociais e a coação para a conformidade são fakes. E mete o dedo na ferida: os algoritmos inventam felicidade. O que Han propõe é tirar da sombra a necessidade de lamento e pesar para reacomodá-la em seu devido lugar.
A dor é um componente da vida
“Esquece-se que a dor purifica. Falta, à cultura da curtição, a possibilidade de catarse”. Han acolhe o desconforto como o inevitável que é – sem que ele seja motivo de inferioridade, sem fazer dele um algoz e sem utilizá-lo como desculpa. E defende que, ao calar a dor, anula-se a solidariedade, a empatia pelo outro. Insensibilidades não fazem refletir sobre os rumos do mundo. Mas, principalmente, impedem a humanidade de um olhar mais atento para si mesma, ignorando cantos e ângulos que carecem de lapidação.
“A dor é um componente da vida. Só não a sente quem aniquila a ideia de um mundo interior, quem passa a vida se distraindo”, sintetiza a psicanalista Mariana Mies, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. “Na tentativa de sufocá-la, perdemos a coisa mais triste de todas: não ter uma existência inteira e verdadeira”, destaca a especialista na alma humana.
“Essa experiência mutilada de que só posso me haver com aquilo que é feliz em mim e de que não posso me haver com o que é ciumento, raivoso, invejoso, destrutivo é sufocante; porque algo em nós sabe quando não estamos agindo em completa sintonia. E essa consciência nos deixa perpetuamente incomodados, ansiosos, angustiados. Não há paz”, resume.
Dores não são escândalos
A primeira manobra para ser, digamos, inteiro e permitir essa coexistência de claros e escuros da alma tem a ver com um pensamento complexo da existência. “O ser humano não tem a relevância no planeta que ele pensa ter”, critica Mariana.
“Somos só mais um alguém e estamos sujeitos à realidade como quaisquer outros. É preciso parar de brigar com o fato de que a realidade contraria os seus desejos e expectativas. Ela é um desenrolar de acontecimentos que às vezes nos agradam e às vezes nos desagradam. Costumo brincar que a primeira frustração do meu dia é o despertador”, pontua.
A paz de espírito depende do dar-se conta de que nós é que funcionamos de acordo com as regras do mundo, e não o contrário. Algo para o qual a sociedade é instagramável, sejamos sinceros, certamente não colabora. O Instagram é a criação de uma realidade paralela, a realidade do desejo de que a vida seja aquilo e só aquilo, com amor e filhos lindos e saudáveis, viagens e risadas.
Como é a vida por trás do algoritmo
“Você quase ouve as pessoas dizerem que queriam que fosse assim. Ao postarem imagens felizes, no fundo as pessoas estão pedindo para que, pelo menos na cabeça dos seguidores, a imagem convença. Quando o outro acredita que minha vida é assim, isso me alivia um pouquinho. Afinal, estou passando a impressão de que não sou inferior e o outro está acreditando”, reflete Mariana.
A realidade vai muito além do que é mostrado
Por trás desse comportamento, está a dor da comparação, que Mariana respeita, mas desmonta com dois bons argumentos. “Comparações são sempre injustas, porque são parciais. Você está se comparando com pedaços da vida do outro, e não com a vida do outro como um todo, porque você não tem a informação completa. E há ainda o elemento gangorra da vida. Todo mundo, em algum momento, toma um pé na bunda, leva um golpe, fica sem poder viajar. Todo mundo se ferra de vez em quando”, observa.
“O fato de o feed esconder tudo isso só revela quanta angústia está envolvida em não poder revelar para o outro, ou essencialmente para si mesmo, que não se tem tudo que quer, que às vezes as coisas tomam um rumo muito diferente”, continua a profissional.
A frustração ajuda no amadurecimento
Já sabemos o que acontece com crianças que nunca se frustram. Ficam incapazes de lidar com conflitos e contradições. O que precisamos observar é que o corte de expectativas, se, por um lado, machuca, por outro, abre caminho para a aceitação, o único lugar onde a mudança de paradigmas pode começar. No budismo, a aceitação não tem nada de resignação ou derrota. Como uma espada, interrompe a resistência, permitindo enxergar além das aparências, projeções e distorções. É uma passagem. O rompimento da ilusão de controle é ainda mais forte na relação com o outro.
“O outro é sempre alguém que vai lembrar você do seu tamanho, da sua relevância limitada. Porque ele é independente, autônomo e livre, a vontade dele pode não atender a sua. Por outro lado, se você entende e aceita isso, sua própria autonomia ganha força. Isto é, se o outro é livre para tomar as próprias decisões, que podem não ser as melhores para você, você também está livre do sofrimento de ter que atendê-lo. Com delicadeza, de preferência, porque já sabemos que o não machuca”, analisa Mariana.
A dor é vital para a sobrevivência
A existência do sofrimento é uma resposta natural a um monte de contingências da vida. A analogia com a dor física deixa isso mais evidente. O neurologista Gabriel Kubota, coordenador da divisão de neurologia do grupo de dor do Hospital das Clínicas de São Paulo, fala do papel fisiológico da dor aguda, fundamental para a sobrevivência e a homeostase (capacidade de o corpo se manter saudável). “A dor aguda permite que a pessoa adapte o seu comportamento de forma a evitar uma lesão. E, caso tenha uma lesão, favorece que essa lesão cicatrize”, afirma.
“Exemplo: a pessoa está cozinhando e sem querer esbarra na frigideira quente. Ela vai sentir dor antes de a pele queimar. Terminações nervosas na pele sinalizam a presença de estímulos nocivos para que a gente rapidamente retire a mão do calor. Se não der tempo e a mão queimar, a pessoa vai continuar sentindo dor por algum tempo como um recurso que a fará se lembrar de proteger o membro até ele se recuperar”, demonstra Gabriel.
Há dores que, infelizmente, nunca vão embora. “No corpo, as dores crônicas afetam cerca de 37% da população brasileira. Entre as principais, estão as cefalias e as lombalgias”, diz Mariana Palladini, médica responsável do Centro Paulista de Dor. Segundo a anestesiologista, a dor física não pode ser separada do cérebro. Piora e melhora com a influência da mente. Daí porque é fundamental ter medicamentos de controle do sintoma, como anti-inflamatórios, analgésicos, exercícios físicos, fisioterapia e também algum tipo de psicoterapia. “A intenção é retirar a dor da frente do paciente e, pelo menos, posicioná-la ao lado”, concorda Gabriel Kubota.
Lidar com a dor requer coragem
O desconforto diminui de intensidade e pode até continuar presente, mas não será incapacitante. Viver dói em vários níveis. No caso das dores mais intensas da alma, às vezes é preciso um conjunto de emoções desagradáveis, mas que são fundamentais para a pessoa se dar conta de que é preciso tomar uma providência e romper, por exemplo, um relacionamento abusivo – e acreditar que pode vir a ser mais feliz lá na frente. Sentir tristeza, nesse caso, é um reflexo de proteção. A dor também ensina. E, como todo professor, precisa de um aluno disposto a aprender.
Não é fácil reconhecer que talvez você seja uma pessoa invejosa. No entanto, só quem assume que sofre por isso pode, em algum momento, mudar a chave e se tornar mais grato pelo que tem e admirar o que o outro oferece de bom. Fazer de conta que a dor não existe não a elimina. E um dia a conta também chega.
É preciso coragem para encarar médicos, terapeutas ou, intimamente, uma consciência despida de filtros sobre si e sobre o mundo. Sem se dar conta das suas frustrações, é impossível avançar. Bem disse a escritora Susan Sontag: “Todo aquele que nasce tem dupla cidadania no reino dos sãos e no reino dos doentes”. Ignorar essa realidade dual é viver pela metade.
Por Kátia Stringueto – Revista Vida Simples
Kátia é jornalista e tem percebido que, apesar de entristecer no início, a dor abre passagem para uma outra paisagem, cheia de relevos e cores.
Fonte: Read More