Um paradoxo. Poucos substantivos definiriam tão bem meu amigo Paulo. Mesmo as décadas de camaradagem, desde a adolescência, não me permitiram entender as razões de ele se projetar como alguém falho em tudo o que fazia. Isso apesar das evidências que apontavam o oposto: ilustrador talentoso, autor de livros, premiado no Anima Mundi, Festival Internacional de Animação. E, o que mais importava para mim: amigo querido e bom de papo.
Mas não era assim que ele se via. Achava que havia uma nuvem escura sobre sua cabeça o tempo todo, dizia que nada do que tentava tinha possibilidade de dar certo. Podia ser um emprego para o qual não era escolhido, o deserto na vida amorosa, as constantes perdas na corrida contra os boletos…
Paulo tinha uma característica comum a muitos que cultivam essa autoimagem: colocava a culpa num azar congênito e citava um verso do bluesman Albert King, que diz “If wasn’t for bad luck / You know I wouldn’t have no luck at all” (“Se não fosse pela má sorte / Você sabe que eu não teria sorte alguma”). Estava convicto de que era marionete do destino traçado por uma força metafísica contrária a ele.
Colecionador de fracassos
Então simplesmente deixou de tentar. Parou de fazer contatos de trabalho, não via mais os amigos (eu era uma exceção, ainda que nossos encontros tivessem se tornado bissextos)… No amor, então, virou um celibatário. Afinal, quem se envolveria com um “colecionador de fracassos” como ele?
Falo do meu saudoso amigo no passado porque ele morreu em 2020, de consequências de um ataque cardíaco grave. Cedo demais, ainda estava na casa dos 40 anos. De certa forma, senti que eu também fracassei com ele. Nunca fui capaz de ajudá-lo a se livrar dessa ideia fixa de ter “nascido para perder”. Se é que isso seria de fato possível.
Não que fosse uma tarefa simples. Segundo a monja budista Pema Chödrön, esses sentimentos negativos sobre si mesmo tomam conta da personalidade. “Permitir-se ser arrastado pelo fracasso cria um enorme senso de ‘eu’. ‘Eu’ como um sólido monolítico em vez de um processo fluido, dinâmico e cambiante. Fica esculpido na pedra que ‘eu sou má, eu sou um fracasso’, e aí você fica meio que viciada na sensação de afundar na autopiedade, na culpa e na vergonha.”
Fracasse melhor
Essa religiosa americana, que tem uma compilação de seus pensamentos sobre o assunto no livro Fracasse. Fracasse de Novo. Fracasse Melhor (Global Editora), nos ensina que, claro, em muitos momentos da vida não conseguiremos atingir nossos objetivos. Mas que devemos refletir sobre esses insucessos como parte natural da existência. E que vão passar.
Pratique o acolhimento do indesejável
Pema Chödrön revela que, para nos reerguer após algum fiasco, precisamos praticar o acolhimento do indesejável. Assim mantemos o que ela chama de “crueza da vulnerabilidade” no nosso coração. Um dos sinônimos de “vulnerável” é justamente “derrotado”. Aceitar o fracasso eventual, ou mesmo uma série deles num período mais difícil da vida, fará, como explica Pema, com que “fracassemos melhor”.
E isso significa ter condições psicológicas para lidar com esse sentimento em vez de empurrá-lo para baixo do tapete – ou, pior, internalizá-lo como indissociável da nossa essência. Enquanto essa vulnerabilidade está crua, fica mais fácil combiná-la com todos os outros aspectos da nossa personalidade – inclusive os que nos enchem de orgulho – sem que ela prevaleça.
Superando o fracasso
E uma das maneiras de conviver melhor com o fracasso é buscar entender as razões de algo não ter dado certo. Porque, acredite, não é um Deus que não gosta de você nem um caso de azar crônico. Se um emprego não se concretizou, pode ser que seu histórico profissional não tenha sido o mais favorável para aquela vaga. E pode ser também que ainda haja chance de reverter essa situação. Se realmente você quer muito esse trabalho, pode buscar uma preparação melhor, investir em cursos que vão lhe dar as habilidades que o empregador deseja…
O amor pode acabar. E tudo bem
E no caso de um relacionamento que terminou? Antes de tudo, vale refletir: será que esse fim foi um fracasso mesmo? Um exercício de autoconhecimento ajuda demais a redefinir o que aconteceu. Se a separação foi a consequência natural de uma vida a dois em que não havia mais romance, intimidade e admiração mútua, tomar novos caminhos tende mais a ser um acerto do que um erro. Fracasso seria empurrar com a barriga uma relação permeada pela indiferença.
E aí está uma das grandes oportunidades de repensar a perspectiva convencional de fracasso. Para nossos avós, um divórcio na família era uma vergonha, uma fraqueza (talvez das duas partes envolvidas). Era desviar-se do padrão que a sociedade esperava de você. Um padrão que mantinha casais infelizes por conveniência. Ouvir mais sua voz interior pode ser um reencontro com a possibilidade de ser amado – por uma pessoa sem os olhos embaçados pelo desencanto ou pelo desgaste da convivência.
Outras formas de demonstrar amor
Idealizar menos o outro ou o que esperar de um relacionamento também muda nossa perspectiva de fracasso. Seu companheiro não sabe pregar um quadro na parede? Que tal focar no quanto ele é bom na cozinha ou cuidando dos filhos? Sua companheira não é de verbalizar o que sente por você? Como lembra o conselheiro matrimonial Gary Chapman, autor do best-seller As 5 Linguagens do Amor, as palavras de afirmação não são a única forma de alguém demonstrar afeto.
Isso pode acontecer por toques físicos ao longo do dia (um carinho ou abraço espontâneo), pela dedicação de tempo de qualidade a você (como desligar o celular no restaurante para ter foco total no encontro), por presentes (que não sejam pelo preço, mas pelo simbolismo que têm) e por atos de serviço (a pessoa que te oferece uma massagem, que cuida bem das plantas que você comprou, que prepara um jantar romântico sem que a data seja necessariamente especial).
Aprenda a ressignificar o fracasso
Ou seja, entender as raízes do que você considera um fracasso é também a chance de ressignificá-lo. Ou de usar esse sentimento para construir algo novo e positivo. “Às vezes você pode pegar a vulnerabilidade e transformá-la em poesia criativa, escrita, dança, música… Artistas fazem isso desde o princípio dos tempos”, ensina a monja Pema Chödrön.
Um artista que moldou seu universo criativo em torno da ideia de fracasso é Allan Sieber. Desenhista que já teve espaço fixo na Folha de S. Paulo e hoje é colaborador frequente da revista Piauí, Sieber tem uma arte chamada Um Gato Chamado Fracasso. O felino desenhado, com uma expressão triste, diz que tem sete vidas, mas todas são ruins.
Outro destino para os fracassos
Hoje, a maior fonte de renda de Allan Sieber é uma newsletter chamada Meu Querido Diário, em que ele conta, sem filtro nenhum, as pequenas e grandes derrotas do seu dia a dia. Pode ser a ocasião em que seu apartamento ficou alagado, os vizinhos insuportáveis ou problemas com um pagamento que deveria receber. Tudo é tema para seu trabalho.
“Escrever sobre fracasso virou uma terapia para mim. Moro no Rio de Janeiro, mas meus melhores amigos estão no Sul ou em São Paulo. Então, não tendo com quem conversar, inventei a coisa de reclamar da vida nesse diário. E isso me ajuda bastante psicologicamente”, afirma.
Segundo ele, o fato de, desde a infância, ter lidado com muitas situações que não saíam como ele esperava, acostumou-o a esperar o pior e saber lidar com ele. “Fui me tornando uma pessoa mais estoica. Para me derrubar tem de ser uma tragédia muito grave.”
O que é fracassar?
E, ainda assim, o desenhista questiona a noção que as pessoas têm de fracassar. “Não acredito, por exemplo, nessa visão capitalista de que não ter conseguido acumular dinheiro e bens seja um fracasso”, ele diz.
Allan sabe que não é preciso ser rico para tirar o estigma de fracassado da alma. “Eu tenho minhas contas em dia, sou pai separado, mas vejo meu filho sempre, vivo da minha arte, uma coisa raríssima no Brasil… Então, de certa forma, me considero até um vencedor.”
A vida vai seguir
O fracasso é matéria-prima da arte de Allan Sieber, mas não o define. Nossos reveses serão alternados com conquistas e períodos em que pouco acontece de muito bom ou muito ruim. Assumir que ninguém é essa imagem sempre gloriosa, e falsa, que vemos no Instagram das pessoas é uma forma de melhorar a autopercepção. Assim desenvolvemos uma perspectiva mais equilibrada sobre nossas capacidades – e também sobre aquilo que não vai dar certo mesmo. E a vida vai seguir mesmo assim. Talvez até melhor do que antes.
Por Alex Martins
Fracassa quando a situação exige habilidades manuais, como trocar chuveiro. Mas não sente seu mundo desabar por causa disso.
Publicado pela revista Vida Simples
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