Mães lutando pela vida dos seus filhos. Dificilmente há um tipo de drama mais contundente do que esse nas telas do cinema. Ainda mais desesperador quando a sociedade está no lado oposto dessa luta. É ao que você pode assistir no documentário Ilegal: A Vida Não Espera, de Tarso Araujo e Raphael Erichsen.
O filme, de 2014 (disponível no YouTube), retrata a burocracia, à época, no acesso à maconha para fins medicinais, contando a saga de mulheres para obter, dentro da lei, remédios à base de Cannabis sativa para o tratamento de suas crianças.
Luta pelo uso medicinal do canabidiol
Gente como Katiele Fischer, mãe da pequena Anny, então com 5 anos, que sofre de uma síndrome incurável de epilepsia e tinha crises frequentes de convulsões, até 80 por dia. O único remédio que ajudou a acabar com as crises foi o canabidiol (CDB). Mas obtê-lo era, quase sempre, uma luta contra a própria Justiça brasileira.
Em uma das sequências mais pungentes do filme, um grupo de mães vai aos gabinetes dos deputados no Congresso Nacional implorar pela liberação da maconha para fins medicinais. Em conversa com o progressista Jean Wyllys, duas delas ouvem do então deputado que a luta dele na política é por um projeto maior: a legalização completa do uso da maconha. Só que isso vai demorar, ele admite, por conta do conservadorismo do Congresso.
Katiele então se desespera diante dessa postura: o foco, para ela, precisa ser a utilização medicinal da erva, pois gera menos rejeição na sociedade e, principalmente, porque sua filhinha está sofrendo com dezenas de convulsões diárias que o canabidiol reduziria. É uma luta contra o tempo.
Em janeiro de 2015, a Anvisa tirou o canabidiol da lista de substâncias proibidas, reconhecendo seu efeito terapêutico e abrindo espaço para que empresas pudessem pesquisar e desenvolver produtos. Katiele Fischer e seu marido, Norberto, foram os pioneiros a importar legalmente. Anny, livre das convulsões, foi progredindo.
Na primeira vez em que ela chorou, seus pais riram, felizes, porque até então a menina não era capaz de expressar sentimentos; na primeira vez em que a criança riu, eles choraram de emoção. Imagine o alívio que pacientes e cuidadores sentiram ao lerem a notícia de que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) autorizou o cultivo doméstico de Cannabis sativa com o intuito de produzir o óleo de canabidiol para fins terapêuticos.
Medicina que vem da floresta
Mas há toda uma medicina que vem da floresta e é ignorada ou combatida pela indústria farmacêutica, que enriquece com seus remédios para finalidades similares. E também pela própria sociedade, que tem preconceito contra plantas cujo uso medicinal é uma tradição longínqua entre quem mora perto ou dentro dos ambientes naturais aonde o cidadão urbano, geralmente, não costuma ir. Pouco a pouco, entretanto, a ciência sofisticada da nossa época vem provando que essa “magia” é muito bem-vinda à medicina moderna, pois auxilia muita gente.
Psicodélicos contra a depressão
Um exemplo de caminho que os cientistas vêm percorrendo é a utilização de substâncias de efeitos psicodélicos no combate à depressão. Sabe-se que, pelo menos, 30% das pessoas com esse transtorno mental não se beneficiam dos antidepressivos encontrados nas farmácias. Isso acontece por dois motivos: as diferenças biológicas entre os indivíduos e o tempo para que as drogas façam efeito, o que leva muitos à desistência do tratamento.
Procurando opções mais efetivas, e com menos efeitos colaterais, os pesquisadores voltaram seus microscópios para os cogumelos alucinógenos. Aqueles mesmos que muita gente usa em chá para uso recreativo. Os cientistas descobriram que uma substância existente nesses fungos, a psilocibina, pode tratar rapidamente a depressão, inclusive em pacientes com câncer.
A psilocibina é, sim, um alucinógeno. Quando decomposta pelo fígado, causa um estado alterado de consciência e percepção. Mas ela tem outro efeito “mágico”. Um estudo comparou os resultados da psilocibina com o escitalopram, um antidepressivo muito indicado pelos psiquiatras. A pesquisa utilizou ressonância magnética no cérebro dos voluntários.
Bastou um dia após a primeira dose da substância dos cogumelos alucinógenos para que houvesse um aumento de atividade em redes cerebrais que, em pessoas com depressão profunda, geralmente sofre uma diminuição drástica. Ou seja, a psilocibina teve efeito antidepressivo quase imediato. Já os voluntários que tomaram as doses de escitalopram não tiveram o mesmo resultado nem seis meses após iniciado o tratamento.
“Além disso, a psilocibina não desencadeia efeitos colaterais típicos dos remédios de farmácia, como a dependência e a queda da libido”, explica o psiquiatra, psicoterapeuta e pesquisador de medicinas psicodélicas Wilson Gonzaga. Esse médico faz uso de ayahuasca (também conhecido por aqui como “chá do Santo Daime”) há mais de 40 anos e recomenda para seus pacientes.
Ayahuasca e experiências espirituais
Em sua primeira experiência com a bebida – que combina duas ervas, o cipó mariri e folhas de chacrona –, Wilson passou horas vomitando. Mas, diz, enquanto seu corpo estava no inferno, sua mente estava no paraíso. Concluiu que o ser humano não “tem” um espírito. Ele “é” um espírito que tem um corpo. “Comecei a agregar ciência, espiritualidade, psicologia e filosofia tanto nas minhas práticas de vida quanto na profissional”, revelou para o podcast Naturalmente.
A própria apresentadora do podcast, Alana Rox, ativista e autora dos best-sellers Diário de Uma Vegana e Diário de Uma Vegana 2, é uma entusiasta das curas que vêm da floresta. Ela teve transtorno de ansiedade, depressão e até fibromialgia (doença reumatológica que afeta a musculatura, provocando dor intensa), que considera ter origens emocionais.
Em 2017, Alana foi a um retiro “consagrar a ayahuasca”, e já nessa ocasião passou por uma terapia completa, entendendo suas relações com os pais e com seu próprio ego. Em 2020, com os sintomas de fibromialgia, começou a usar psilocibina, canabidiol e, em uma sessão com ayahuasca, curou totalmente seu problema físico. “Foi uma cerimônia linda, em que eu senti os gatilhos emocionais da doença, e no dia seguinte não tinha mais nenhum sintoma da fibromialgia”.
Espiritualidade e ciência, juntas
A ligação da ayahuasca com uma revelação do sagrado é comum entre os usuários. Mas seu uso medicinal vai além do contato com a espiritualidade. É o que apontou um estudo brasileiro publicado na revista Psychological Medicine, da Universidade de Cambridge (Reino Unido). A pesquisa, realizada pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, mostrou bons resultados da ayahuasca entre mulheres e homens que sofrem com depressão.
Segundo a pesquisadora Fernanda Palhano, os pacientes tiveram melhora no dia seguinte ao início do tratamento, e com uma única dose. “É uma quantidade similar à que se toma em um ritual, numa fração de 1 ml por peso”.
No Brasil, o consumo da ayahuasca é autorizado pelo Conad (Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas), mas somente em cerimônias religiosas. Não é à toa que Jöyce Soares, uma estudiosa dos cantos dos povos da floresta, trabalha os princípios terapêuticos e de expansão da consciência sempre marcados pela espiritualidade, e diretamente com os indígenas. Tanto traz guardiões da natureza para ministrar sessões de consumo da ayahuasca em São Paulo quanto organiza viagens para que as pessoas da cidade passem pelos rituais nas aldeias.
“Demorei quatro meses, em 2018, antes de tentar a bebida, apenas estudando a ayahuasca”, ela diz. “Quando experimentei, vivenciei uma experiência de estar no útero da minha mãe, absorvendo tudo o que ela sentia quando estava na minha gestação. Aquilo fez muito bem para o meu psicológico e aumentou muito a empatia que sentia por ela”, recorda Jöyce.
Estudiosa de outras curas que vêm da natureza, ela também indica o colírio Sananga, feito a partir da raiz de uma planta brejeira em forma de arbusto chamada Tabernaemontana undulata, que é triturada e transformada em um extrato líquido. O colírio é usado para tratar conjuntivite, catarata, dores de cabeça e sinusite. Ela ainda recomenda o rapé, raspas de uma casca de árvore que, sopradas nas narinas do paciente, ajudaria quem tem dificuldade de concentração.
Cautela na abordagem natural
Mas vale lembrar: antes de recorrer a remédios naturais, converse com especialistas. Porque, assim como as drogas de farmácia, as plantas também têm suas contraindicações e efeitos adversos. A ayahuasca, por exemplo, não deve ser tomada por quem tem esquizofrenia ou paranoia, pois seu consumo pode fazer a pessoa surtar.
Além disso, é imprescindível consumir no contexto adequado, como confirma Jöyce: “Acho importante conhecer a ayahuasca, por exemplo, junto aos povos originários”. E, independentemente de lançar mão dessas medicinas, é valioso saber que muitas são ancestrais e cada vez mais corroboradas pela ciência, ampliando nossos horizontes para tantas possibilidades de cura.
Por Alex Martins – revista Vida Simples
É um curioso pelos efeitos curativos da floresta. Mas admite que ainda tem um ansiolítico sintético à mão em caso de emergência.
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