O tempo, muitas vezes, parece ser um conceito distante da realidade. A maneira como lembramos dele é associada aos relógios, aos calendários e às estações do ano, que demonstram o “passar” de um momento para o outro. Para além dessa noção externa, especialistas confirmam que o corpo também possui seu próprio ritmo.
Como afirma a Dra. Deborah Beranger, endocrinologista, possuímos relógios internos que governam nossas funções fisiológicas e biológicas. E estas também dispõem de um tempo cronometrado para exercerem seu papel no organismo.
A médica explica que as pessoas estão geralmente familiarizadas com os ritmos circadianos como uma forma de se referir ao ciclo de sono, ou seja, ao acordar e dormir. “Nas últimas duas décadas, no entanto, os pesquisadores descobriram que o relógio no cérebro não é, de forma alguma, o único em nosso corpo”, afirma.
O que é o ciclo circadiano?
O ciclo circadiano teria ligação com o tempo que nosso organismo leva para exercer todas as suas funções no decorrer do dia. A partir desse conhecimento, surgiu, entre a comunidade médica, a cronomedicina. Já que “cronos” vem do grego khrónos, que significa tempo, os especialistas dessa linha estudam causas e efeitos dos diversos relógios biológicos e fisiológicos no corpo.
“Há relógios celulares organizados e que estão presentes em diversos órgãos representando cada sistema fisiológico: há um relógio da pele, um do fígado, um do sistema imunológico, para o rim, coração, pulmões, músculos e até sistema reprodutivo. Cada um desses relógios sincroniza-se com o relógio central no cérebro como uma seção de orquestra seguindo seu maestro”, compara a Dra. Deborah Beranger.
Desequilíbrios fisiológicos no corpo
Quando ocorre a desregulação interna do nosso relógio biológico, é bem possível que isso desequilibre o sistema fisiológico. A médica aponta que o jet lag é um dos exemplos mais comuns desse desequilíbrio. “Quando viajamos por vários fusos horários, nossos relógios centrais e periféricos se reajustam em taxas diferentes para corresponder ao novo meio ambiente, mas isso pode vir acompanhado de sintomas como insônia, exaustão e problemas estomacais e intestinais, lentidão e distração”, diz a endocrinologista.
Ainda de acordo com a Dra. Deborah Beranger, o fígado é um órgão muito sensível e afinado para determinar quando acelerar o metabolismo com base em quando você come. “Então, fica fácil entender que, se você fizer isso no meio da noite, o fígado estará recebendo sinais contraditórios do cérebro, que está dizendo para descansar. […] Como resultado, quando o fígado começa a processar a comida da meia-noite, ele o fará com menos eficiência do que teria feito após uma refeição diurna – e envia sinais conflitantes de volta ao cérebro e a outros sistemas orgânicos. Isso também prejudica o sono”, esclarece.
O que é cronodisrupção?
Segundo a Dra. Marcella Garcez, nutróloga e diretora da Associação Brasileira de Nutrologia, o termo cronodisrupção é muito importante e trata-se de uma alteração do padrão normal do ciclo circadiano. “Isso leva a várias alterações fisiológicas e metabólicas e está relacionado a vários distúrbios e doenças. […] Muitos pacientes que enfrentam mudanças nesse ciclo não conseguem seguir um plano alimentar, têm maior carga de estresse e impulsos alimentares”, afirma.
Em 2021, a revista Nature destacou que uma dieta de boa qualidade e que seja consumida de forma rítmica (ou seja, durante nosso ciclo ativo) é importante para manter a gordura saudável do corpo. Conforme a médica, novos estudos apontaram que uma dieta baseada no consumo exagerado de gordura a longo prazo também seria prejudicial por esgotar as células de gordura saudáveis.
“Isso causa defeitos no armazenamento de gordura e o excesso de lipídios se espalha para outros órgãos, como o fígado e os músculos, de acordo com o estudo. Ter gordura nessas áreas pode levar ao diabetes tipo 2 e à resistência à insulina”, acrescenta.
“Essas mudanças no ciclo circadiano estão associadas à expressão e à produção de hormônios como cortisol, leptina e adiponectina, relacionados à obesidade e que demonstram ritmicidade circadiana”, ressalta a Dra. Deborah Beranger.
Comer no tempo certo e na quantidade indicada
Além da cronodisrupção, há um termo chamado crononutrição – que leva em consideração não só o alimento e sua forma de preparo, mas também o horário em que é ingerido. O periódico Cell Reports mostrou, em 2021, que, para construção, preservação ou reabilitação muscular, além de comer a quantidade ideal de proteínas, é necessário ingeri-las na hora certa. No café da manhã, por exemplo, elas aumentam o tamanho e a função muscular.
“As proteínas são um macronutriente alimentar essencial que auxilia no crescimento e reparação do corpo. […] Estudos recentes mostraram que ter a quantidade certa de proteína na hora certa do dia é essencial para o crescimento adequado. Isso é chamado ‘crononutrição’”, afirma a Dra. Marcella Garcez, que afirma que o momento em que você come é tão importante quanto o que e como você se alimenta.
Impacto do tempo no funcionamento dos órgãos
Os cientistas buscam incansavelmente uma forma de descobrir como os relógios presentes nos humanos funcionam e como isso permitirá controlá-los de modo a melhorar a saúde. O núcleo supraquiasmático (centro primário de regulação dos ritmos circadianos) está conectado diretamente à retina e, na década de 1980, foi confirmado que o relógio cerebral poderia ser calibrado pela luz solar ou luz artificial, que sinaliza quando é dia. Isto é, esse tipo de informação ao cérebro permite que nosso organismo esteja sincronizado com as 24h do dia geográfico de forma natural.
“Obter luz consistente ao acordar e acordar no mesmo horário todos os dias pode ajudar a manter o relógio no caminho certo para que, por sua vez, você adormeça na hora ideal. Isso resulta em menos contraste entre sua fase ativa e sua fase de descanso, o que, no caso do sono, pode se traduzir em sentir-se mais cansado durante o dia e acordar com mais frequência à noite”, afirma a Dra. Deborah Beranger.
Complicações de um relógio desregulado
O problema é que os níveis de estresse diários, os horários de trabalho não tradicionais (à noite, por turnos), a vida de festanças, o uso excessivo dos smartphones antes de dormir, o sedentarismo, a falta de exposição à luz solar e muitas outras questões comportamentais e mentais, como o crescimento dos casos de ansiedade e depressão, estão bagunçando a ampulheta interna.
Um dos órgãos que podem ser danificados pelo ciclo circadiano é o rim. As horas mal dormidas podem interferir em seu bom funcionamento, segundo a médica nefrologista Dra. Caroline Reigada, especialista em Medicina Interna.
“Pesquisas mostram que dormir poucas horas por noite aumenta o risco de perda da função renal. Mulheres que dormem 5 horas ou menos por noite, por exemplo, têm um aumento de 65% de chances de sofrerem rápido declínio das funções renais se comparadas àquelas que dormem 7 ou 8 horas”, explica.
Além de filtrarem a urina, os rins ajudam a manter a pressão arterial, auxiliam o coração e no correto funcionamento dos músculos, mantêm os ossos saudáveis e estimulam a produção de glóbulos vermelhos. Dormir pouco pode reduzir a capacidade dos rins desempenharem essas funções no longo prazo.
Efeitos do ciclo circadiano no sistema reprodutivo
Segundo o endocrinologista Dr. Rodrigo Rosa, especialista em reprodução humana, dormir mal de forma contínua pode interferir na fertilidade. Ou seja, o efeito do ciclo circadiano irregular tem impacto no sistema reprodutivo.
“O sono é fundamental para o bom funcionamento da hipófise, glândula presente no cérebro que é responsável pela […] estimulação dos ovários e dos testículos. Logo, quando o período de repouso é curto ou de pouca qualidade, essa glândula não funciona da maneira como deveria, o que, consequentemente, interfere na fertilidade”, explica o profissional.
Implicações causadas na pele
Existem danos na pele influenciados pela má qualidade do sono ou bagunça dos ritmos circadianos. “Durante o sono, ocorre um relaxamento muscular, que evita as rugas de expressão pela mímica facial durante o dia, e a liberação de substâncias como o hormônio do crescimento (GH), que é responsável pelo desenvolvimento e renovação celular, inclusive das células de colágeno, que são fundamentais para a firmeza e viço da pele”, destaca a dermatologista Dra. Paola Pomerantzeff, membro da Sociedade Brasileira de Dermatologia.
Ela reforça que noites mal dormidas, além de diminuírem a produção de colágeno, são capazes de aumentar a liberação de hormônios do estresse, como o cortisol, com consequente aumento de radicais livres, oxidação das células da pele e aceleração do processo de envelhecimento cutâneo.
Mudanças na rotina são importantes
Melhorar a qualidade do sono, bem como mudar hábitos para controlar o estresse, pode ser uma luta difícil, mas vale a pena resistir. Para Dra. Deborah Beranger, existem práticas que podem ajudar nessa mudança.
“Busque realizar uma atividade física de que você goste. Quando seu corpo gasta energia, fica mais fácil regular o sono e diminuir o estresse. Ainda, tente uma alimentação mais saudável, evite gorduras excessivas principalmente à noite. Quanto ao estresse do trabalho, o ideal é aproveitar tentar relaxar quando chega em casa lendo um livro, fazendo meditação ou até terapia […]”, recomenda.
Por Paula Amoroso
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