Muito pequena, tive uma professora que me ensinou sobre confiar em si mesmo. Seu nome: Maria. A personagem interpretada pela atriz Julie Andrews no clássico A Noviça Rebelde (1965). Convocada a ser babá de sete órfãos de mãe, sem ter experiência alguma no ramo, ela estremece. Porém, a caminho da mansão da família Von Trapp, canta, saltitante: “Eles vão me colocar à prova. Mas vou fazê-los ver que eu tenho confiança em mim”.
Maria é uma explosão de vitalidade e carisma. Devota da natureza, segue cantando que confia nos raios do sol, na chuva, no retorno da primavera e, por conseguinte, nela mesma. Como não amá-la? Sua autoconfiança contagia crianças e adultos.
Pois eu cresci, a vida me estendeu um mostruário de desafios e frustrações, e, em muitos momentos, congelei. Não consegui saltitar confiante como a protagonista do filme. Quem aí se identifica?
A fé não é uma rocha inquebrantável
Não vá pensando que a fé em si mesmo é uma rocha inquebrantável, porque ela não é. Podemos passar longos períodos nos sentindo incapazes, esvaziados de recursos, acreditando que não somos bons o suficiente para resolvermos os problemas que nos assolam – que dirá para desfrutarmos do que nos faz bem… Mas essa não é toda a verdade.
Também reside em cada um de nós a possibilidade de reconhecer nossa força, nossa potência, de nos saber capazes de lidar com os fatos da vida, crescendo por meio deles. A questão é como insuflar essa virada.
O que corrói a nossa confiança?
Mas vamos com calma. Antes, seria bom investigar o que costuma corroer a confiança e nos apequenar. Para a gente ter mais clareza do que nos fragiliza e poder fazer algo construtivo com isso. “Crianças que recebem com frequência críticas negativas, por exemplo, tendem a se tornar adultos inseguros e com baixa confiança em si mesmos”, afirma a psicóloga Andréa Cordoniz, autora do livro-caixinha O Poder da Autoconfiança (Matrix).
O que costuma advir dessa experiência, ela prossegue, são crenças limitantes que fazem com que não nos sintamos dignos de sucesso, admiração ou merecimentos. “Estes tornam-se indivíduos que não acreditam em suas habilidades, na sua força e no seu potencial, o que pode gerar um ciclo nocivo, levando-os a agir, ou deixar de agir, quando necessário, confirmando, assim, sua autodepreciação.”
É trágico, pois como alguém pode se relacionar de maneira saudável, nas diferentes áreas da vida, se criou sobre si próprio uma percepção tão diminuída? As chances de tolerar desrespeitos e abusos, infelizmente, são muito maiores.
Cada um tem seu caminho
E não é só isso. Deve-se acrescentar a influência que chega de fora, atualmente, sobretudo, centrada na performance midiática e na comparação permanente. Todos os dias, milhares de pessoas se sentem muito menores do que são, pois é isso o que depreendem das imagens circulantes nas redes sociais.
“Há sempre um outro em nossos importantes celulares expondo o quanto consegue produzir mais, melhor e suficiente. Há sempre um outro em nosso ideal que fazemos questão de esquecer que é um outro igualzinho a gente: limitado”, pontua a psicóloga, psicanalista e escritora Larissa Lima.
Veja que sutil. De acordo com a especialista, é como se uma parte nossa quisesse acreditar que há alguém que consegue mais, melhor e de forma suficiente. Pois, se assim é, um dia poderemos gozar da mesma excelência. “O impasse é que o dia de alcançar o ideal nunca chega, porque o ideal sempre muda. Quando se chega perto, já é outra coisa. Puff, escapuliu”, ressalta.
Bem mais salutar seria consumirmos uma quantidade menor de conteúdos e redirecionarmos o foco para nós mesmos, a fim de nos havermos com o que levamos dentro de nós. “O ser humano angustiado precisa de uma sólida restauração, retornando ao estágio de aceitação plena de sua verdadeira natureza e vocação, para superar a sua fragilidade”, propõe Heloiza Ronzani, coautora do livro Força Interior: A única fonte de realização possível (Gente Autoridade), junto a Dwight Ronzani.
“É importante retomar os valores, os princípios morais que regem sua vida, para revigorar todo o seu contexto e satisfação pessoal”, ela complementa.
Confiando em nossa inesperada originalidade
Arrasada pelo baque que a pandemia cravou em seu espírito e em seu negócio, a especialista em confeitaria artística Débora Tirabasso, proprietária da Jolie Doces, teve justamente de fazer essa lição. Quando largou a estável carreira de engenheira química para se arriscar na gastronomia, ela seguiu os mandamentos do amor e confiou na força que a impulsionava. “Eu sabia que esta é a minha verdadeira vocação e que sou boa no que faço”, sustenta.
Só que, anos mais tarde, quando todos estavam recolhidos e as festas varridas do horizonte, ela teve de redescobrir a autoconfiança para se manter firme em seu propósito e não abdicar do que ama fazer. “Foi difícil. Uma luta diária. Mas nunca pensei em desistir. Isso jamais. Aproveitei que as coisas estavam paradas e me aprimorei em pontos que precisavam de reformulação. Isso me deu ainda mais confiança para continuar no ramo”, ela conta.
Não devemos subestimar a criatividade, visto que ela é o motor de arrancadas na vida. Além disso, a cada nova investida, nossos recursos e potenciais vão ficando mais nítidos para nós mesmos, como se nos dissessem: “Viu, não te falei que você conseguiria?”. “Quando nos surpreendemos com nós mesmos, estamos sendo criativos e descobrimos que podemos confiar em nossa inesperada originalidade”, postula o psicanalista inglês Donald Winnicott.
Confiança ao redor
Às vezes, um ligeiro ajuste na nossa autoavaliação já pode surtir efeitos substanciosos. Como na história narrada pelo pastor e escritor estadunidense Norman Vincent Peale no livro Você Pode, Se Acha Que Pode (Cultrix). Certa tarde, o telefone dele, em Nova York, tocou. Um jovem aflito, de outro país, o procurava para desabafar, repetindo que tinha um problema insolúvel.
Calmamente, Peale foi devolvendo ao rapaz o que a ele pertencia: o senso de oportunidade ao se deparar com o telefone do autor na última página do livro; a considerável dose de agressividade que o levou a fazer alguma coisa (no caso, a ligação telefônica) sem hesitar; o despojamento para falar inglês mesmo sem dominar o idioma; a confiança no que tinha de fazer, ainda que fosse julgado por seu interlocutor, um homem de prestígio, como uma pessoa desequilibrada ou impertinente.
“Não lhe direi que seu problema não é difícil. Talvez seja dos mais difíceis e exigirá tudo de você, mas entenda bem uma coisa: quaisquer que sejam essas exigências, você tem condições para satisfazê-las”, atestou o pastor. Meses depois, o jovem lhe contou que estava lidando bem com as situações que surgiam em seu caminho.
A dúvida sempre bate à porta
No entanto, seria ingênuo supor que, uma vez vitaminada, a confiança em nós mesmos nunca nos abandonará. Afinal, estamos todos à mercê do imponderável, como também das aventuras que podem nos arrebatar e nos desestabilizar, ainda que sejam boas novidades. Por que não? Quantas vezes uma conquista não nos fez duvidar se merecíamos tamanha gentileza da vida?
“Ninguém é confiante o tempo todo. Até porque não há uma confiança completa. Terá sempre uma parte nossa que vai titubear e ter medo. Nesse momento, é sempre bom ter alguns outros de confiança por perto. Eles nos autorizam, acreditam na gente e deixam a dose de confiança um pouquinho maior”, sugere Larissa.
Ela não fala isso apenas para disseminar teoria. Não, não. Recentemente, sentiu a crença em si mesma tremelicar quando se percebeu autora de um livro. Mesmo assim, disse sim à ousadia de lançar seu primeiro romance, As Palavras Poderiam me Adotar (Patuá).
“Não sou das que acreditam em receitas. Mas penso que foi o caso de colocar o medo debaixo do braço, fazer as pazes e dizer: ‘Seremos nós dois a vida toda, vamos ter de nos entender!’. Depois: parar, olhar os dois lados da rua e atravessar”, reconhece.
Além disso, ela contou com o apoio e o apreço da sua professora, a psicanalista e escritora Ana Suy. Confirmando a tese de que é bom ter ao lado quem nos enxerga e nos encoraja a saltar.
Reunindo forças
À medida que atravessamos sucessivas ruas nos mapas dos nossos dias, fortalecemos a fé em nosso tino e ficamos mais safos. Isso nos conta Carla Leirner, jornalista e cofundadora do canal “Minha Idade Não Me Define”, voltado para o envelhecimento consciente. Nos últimos anos, ela se viu desafiada a perseverar, apesar de sentir que a autoconfiança balançava, principalmente nos momentos mais densos, em que a desorientação queria minar suas forças.
Não era para menos. Uma das filhas se afastou dela por quase cinco anos, o trabalho com um cliente de peso foi encerrado e, mais recentemente, o marido pediu o divórcio. No entanto, ereta está, redescobrindo-se como influenciadora digital aos 60 anos, pois, na esteira dos infortúnios e seus aprendizados, sua autoestima renasceu.
“Sem autoconfiança, a gente morre. Inúmeras vezes, ela desaba, mas como sei que os desafios vão me levar para a frente, vou reconstruindo a fé em mim mesma e me agarrando ao que eu tenho. É uma eterna reconstrução”, ela diz. “Aliás, ter a certeza de que as coisas doloridas passam é um presente da maturidade que ajuda a atravessar os terremotos”, acrescenta.
Acredite em você e siga em frente
Entre ficar encolhida num canto e subir ao palco, Carla escolheu a segunda alternativa. Certa vez, a apresentadora Oprah Winfrey foi incentivada por sua mentora, a escritora Maya Angelou, a fazer o mesmo. Esta lhe enviou um presente que gostaria que qualquer filha sua tivesse. Era um CD com uma canção de Lee Ann Womack. Um dos versos dela dizia: “Quando precisar escolher entre ficar sentado e dançar, espero que você dance”. “Até hoje mal consigo ouvi-la sem cair no choro”, ela confessa na obra O Que Eu Sei de Verdade (Sextante).
Outra fornada de sabedoria encontramos na conversa fictícia entre um filósofo, seguidor do austríaco Alfred Adler, fundador da psicologia do desenvolvimento individual, e um jovem cético e questionador – mote do livro A Coragem de Não Agradar (Sextante), de Ichiro Kishimi e Fumitake Koga. O velho sábio lhe conta que, na visão de Adler, “uma pessoa só tem coragem quando é capaz de sentir que tem valor”.
A dinâmica seria mais ou menos esta: se alguém sente que tem valor, pode se aceitar como é e ter coragem de enfrentar suas tarefas da vida. Imediatamente, ele retruca: “Mas como alguém pode passar a sentir que tem valor?”. Eis a resposta: “Quando é capaz de sentir que é benéfico para a comunidade, que pode dar contribuições a outras pessoas”, arremata o mestre.
Normalizando a síndrome do impostor
Mesmo assim, ninguém está livre de ser acometido pela chamada “síndrome do impostor”. Duvidar de nossas potencialidades, ocasionalmente, é normal, tranquilizam os especialistas. Em algumas situações, podemos, inclusive, temer que as pessoas à volta reconheçam nossas “incapacidades” e nos desmascarem por sermos “uma fraude”.
“Compreender essas oscilações e reconhecer quando estiver vivenciando a síndrome do impostor é importante e recomendável para sermos mais confiantes e possamos receber merecidos elogios e premiações por nossas conquistas”, alerta Andréa Cordoniz.
Heloiza, por sua vez, acredita ser essencial buscarmos uma nova mentalidade por meio do autoconhecimento, para que possamos nos desenvolver emocionalmente, sobretudo nos libertando dos bloqueios mentais, dos pensamentos e das emoções que representam ameaças à vida. “O pensamento deve se voltar para o nosso interior, pois nele existe a grande riqueza capaz de motivar, de despertar coragem e nos manter em evolução”, ela ressalta.
Uma das coisas mais bonitas dessa história é justamente a ideia de que você não acredita em si mesmo apenas para se sentir bem em seu íntimo e ser capaz de realizar seus intentos. “Aqueles que aprenderam a desenvolver uma crença realista e altruísta em si próprios constituem um patrimônio da humanidade, pois transmitem tal qualidade aos que dela carecem”, escreveu Peale.
Mas, quando notar que está titubeando, lembre-se de Maria: “A cada passo, me torno mais segura”, ela também canta.
Por Raphaella de Campos Mello – revista Vida Simples
É jornalista e, recentemente, resgatou a confiança em si mesma e inaugurou um capítulo gratificante da sua biografia.
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