A serra catarinense não estava nos meus planos. O objetivo até chegar de carro às cidades turísticas do Rio Grande do Sul, com meu marido e filhos, era passar uns dias na minha irmã que mora em Florianópolis viajando pelo litoral. No entanto, às vésperas da nossa saída de São Paulo, ela falou que também gostaria de passar um tempo fora de casa. Resolvemos, então, mudar o clima e o cenário e nos encontrar em Urubici, uma das regiões mais altas e frias do Brasil.
No caminho, já no pé da serra, paramos numa pequena cidade chamada Aurora para nos hospedar na casa de uma senhora descendente de colonizadores alemães. Eu ainda não sabia, mas estava no lugar que mudaria meu olhar de turista para sempre – neste momento, sinto ter de revelar ao leitor que espera algo surpreendente desta história: nada de extraordinário aconteceu em Aurora. E foi justamente isso que me fascinou.
Aurora tem festa todo dia
Cozinheira de mão-cheia, Dona Sieglinde nos acomodou há dez anos em um quarto vizinho ao seu, no coração de uma morada rica em animais e em produção de hortaliças, frutas, doces e conservas. Do lado de fora, enquanto ela cuidava de sua propriedade, meus filhos brincavam numa praça, até que a turma inteira de uma sala de aula chegou para curtir o recreio com eles. “Mãe, Aurora tem festa todo dia?”, escutei. E era mesmo o que parecia.
Projeto de agroturismo ecológico
Sieglinde faz parte de um grupo de agricultores que trabalham em rede pelo agroturismo ecológico e que formam a Acolhida na Colônia, um projeto filiado à organização Accueil Paysan, que surgiu na França na década de 1980 e se expandiu para mais de 30 países, entre eles o Brasil.
“Para se associar, é preciso desenvolver atividades agrícolas em propriedade rural, trabalhar com alimentos livres de agrotóxicos, comercializar produtos regionais e praticar o agroturismo”, explica a técnica Lucilene Assing, sem descrever em palavras o que está cravado na raiz do projeto e que encanta qualquer turista de mente aberta: o acolhimento genuíno.
Importância de desacelerar para desfrutar
Não se trata de turismo comunitário, ecológico, cultural ou zen, embora haja afinidade com cada um deles. O turismo sem pressa – ou slow travel, conceito que vem do Movimento Slow, criado para diminuir o ritmo frenético das pessoas – tem se elaborado como um estado de espírito do viajante. E o destino, seja urbano ou rural, longe ou perto, é o que menos importa.
“Muito mais significativo do que conhecer 15 cidades em poucos dias e colecionar pontos turísticos famosos e selfies é conversar com uma pessoa local e entender a cultura do lugar. Isso, sim, nos transforma”, diz Patricia Haberkorn, prestes a viajar de bicicleta por rotas alternativas da Croácia com amigos já habituados a realizar esse tipo de passeio, sem turismo convencional, pela agência Bike Expedition. “É incrível conhecer a realidade dos lugares e seus povos.” Um movimento que, aliás, ela sabe fazer muito bem.
Integração com a comunidade local
Proprietária do hotel-fazenda Morros Verdes, em Ibiúna (SP), Patricia se dedica desde 2006, com seus pais e irmãos, a compreender e transformar a terra e a comunidade em que estão inseridos, no bairro Verava. Além de a família escolher uma área degradada de Mata Atlântica para reflorestar partindo da filosofia da permacultura, contratou antropólogos para conhecer as pessoas que moram lá e suas necessidades.
“Para nós, não adianta construir uma ilha num lugar sem riqueza, como acontece com outras hotelarias em áreas rurais do país. Entendemos que somos uma das unidades do bairro e que é interessante crescermos juntos, inclusive porque toda nossa mão de obra é local”, explica. De lá para cá, o hotel já montou junto à prefeitura um instituto com biblioteca e espaço para festas e cursos, além de uma escola no contraturno para filhos de funcionários e outras crianças.
Reflexões sobre estilo de vida
Hoje, Patricia trabalha especialmente na integração entre turistas e moradores para que haja uma troca além do convencional. “Nossa ideia é fazer com que o hóspede não se limite ao contato com a comunidade local só dentro do hotel, mas também que ele vá visitar as casas dos moradores que abrirem suas portas para conhecer sua produção. Isso gera renda extra e um intercâmbio de culturas”, conta ela, permitindo que o turista conheça novas formas de viver e, com isso, reflita sobre seu estilo de vida, sobre como se relaciona e quais atitudes de mudança estão ao seu alcance, incluindo nos lugares por onde passa.
Impacto da presença
Há quem associe o turismo de transformação apenas às peregrinações ou retiros espirituais, de meditação ou detox. No entanto, no slow travel, cuja mentalidade nos conecta a tudo que acontece no entorno (e não só dentro de nós), vale pensar também no legado.
Na fazenda da Patricia, o hóspede pode plantar uma árvore, colher o que será servido mais tarde ou participar de algum projeto social do bairro. “Proponho um turismo consciente, de vivência, em que o turista sempre terá uma comunicação com a terra ou com a comunidade”.
Para reforçar essa prática, ela lançou um projeto inspirado no WWOOF, programa mundial de intercâmbio em fazendas orgânicas, onde um turista voluntário trabalha quatro horas por dia em troca de hospedagem e alimentação.
No início do ano, a mestra em TI e design digital Amanda Camillo Palandi passou por lá, deixando pegadas e enriquecendo a vida. “Adquiri conhecimentos importantes sobre agrofloresta e me senti da família. Minha colaboração na parte digital, registros fotográficos e mesmo minha presença foram muito valorizados”, lembra a viajante, que logo estará em Portugal, transformando mais um lugar do mundo em seu lar, doce lar.
Por Izabel Duva Rapoport – revista Vida Simples
É jornalista e viajante encantada por ecoturismo. E tem amado subir montanhas madrugada adentro para ver o sol nascer.
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